Era eu muito miúdo e apareceu-me lá por casa um romance de capa vistosa, com um cavalo empinando-se, a sobrelevar vivas chamas, acima dum título que bem me intrigou: Fogo na Noite Escura. Não sei que idade teria eu, mas a vontade de ler o livro que, numa mente infantil, sugeria cavalarias e aventuras, foi vencida pela dificuldade de decifração. Não era, de facto, para a minha idade. Tinha razão o meu pai. Viria a lê-lo mais tarde, noutra edição, noutras circunstâncias, tomando contacto com aquele particularíssimo mundo da juventude coimbrã que outrora me escapara. E quando as contingências do curso que escolhi me obrigaram a sofrer a pestilência duma morgue, logo me vieram à ideia as primeiras páginas de Fogo na Noite Escura, exprimindo exactamente o que eu senti, em cenário de autópsia.
Fernando Namora! — Com que admiração o meu pai pronunciava este nome… Assim fui criado e assim me habituei a repeti-lo, nas tertúlias juvenis, na faculdade, e, posteriormente, nestas andanças de escriba, não sem controvérsia. Eram outros tempos…
Foi entretanto lido e relido, não de todo, mas considerado nas suas variadas facetas, de romance, poesia, reflexão, não raro com grata surpresa.
Obras como Retalhos da Vida de um Médico, O Homem Disfarçado, Marketing, ou Os Adoradores do Sol passaram a integrar um espólio que, lá do alto, nos informa, acrescenta, e desafia.
Sóbrio e discreto, na vida como no seu múnus de escritor, Fernando Namora sempre se revelou um homem do seu tempo, do lado do progresso e da democracia, avesso a arroubos, exuberâncias e exibições, mas acompanhando, atento, desde o quotidiano mais prosaico da vida portuguesa, aos sofisticados encontros de Genebra, desde o quotidiano pequeno-burguês nacional, até ao espanto intrigado e descomprometido dos Adoradores do Sol, em suma, volteando a eito a rede do verdadeiro escritor, a cujo olhar atento pouco escapa, o que, diga-se de passagem, podendo constituir um privilégio, não deixa de ser uma sina. Passaram-lhe de largo infâmias e aleives em que um valhacouto residual e abjecto então se comprazia.
Tive o prazer de voltar recentemente a essa pequena maravilha de traça e contenção que são os Retalhos da vida de um Médico, o jogo com a história jocosa ou pícara, a aventura do jovem médico, a cavalo, entre tempestades e acampamentos nómadas, atalhando as crendices e aprendendo os jeitos populares. Mas também, já numa outra feição de escrita, se nos depara o confronto de personalidades em transe, roídas de percalços, covardias, incongruências e perplexidades, sobre fundo sombrio, dominado pela dúvida e pela ambiguidade, como em O Homem Disfarçado.
No assombro pelas contradições da existência, cristalizou-se uma experiência transmitida em prosa simples e fluente que ficará, decerto, na História da nossa Literatura.
Os críticos e estudiosos literários dirão muito melhor e fundadamente do que eu sobre um autor que foi um dos mais lidos e traduzidos da literatura portuguesa. No que pessoalmente me concerne, relembro a simpatia encorajadora com que Namora acolheu os meus primeiros livros. Nunca tivemos ocasião de nos encontrar pessoalmente, mas ele fazia-me saber por amigos comuns – estimados amigos – a sua opinião e o seu apreço. E não há nada mais gratificante para um escritor arriscando os seus primeiros passos nestes terrenos incertos, que a palavra benigna dos consagrados. Calou bem fundo este traço de generosidade, acrescido a tantos outros que já o favoreciam.
Na prosa do século XX, já de si rica, variada e controversa, Namora sobressai, sem sombra de dúvida, como uma presença de elevada estirpe.
Mário de Carvalho escreve sobre Fernando Namora

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