Em Manual do Bom Fascista, Rui Zink, coerente com a sua anterior obra, constituída por romances, novelas e contos valorizadores de um eixo de denúncia social com base num estilo irónico-satírico (basta pensar na tetralogia sobre a crise social publicada desde 2008: Destino Turístico, A Instalação do Medo, A Metametamorfose e Outras Fermosas Morfoses e Osso) reabriu a ferida (incicatrizável?) da cultura portuguesa: a questão da Intolerância, um ninho de serpente que nos persegue desde o Renascimento.
Para o autor, sinónimo atual de intolerância seria a ressurreição do conjunto de pensamentos e comportamentos que modelam a existência de um “bom fascista”: branco, cidadão “decente”, prezador da família clássica, católico cumpridor, racista (por vezes recatado), xenófobo, anti-imigrante, nacionalista e patrioteiro, saudoso do império, colonialista envergonhado, antimulticulturalista, antiecumenista, antimodernista, olhando para a emergência de novas atitudes comportamentais, próprias do século XXI, como um relaxamento de costumes, corruptor das antigas e sagradas instituições.
Com efeito, desde o início da Idade Moderna que vivemos sob regimes intolerantes e é impossível esquecer, como um dos momentos mais altos do fanatismo ideológico em Portugal, que um dos mais brilhantes intelectuais do século XVI, Damião de Góis, foi denunciado à Inquisição pelo fundador português dos Jesuítas, que dirigiria quase omnipotentemente a cultura portuguesa durante os dois séculos seguintes, até ao Marquês de Pombal, que, por sua vez, os perseguiu de modo igualmente fanático, sucedido pelo Intendente Geral da Polícia, Pina Manique, que não menos fanaticamente perseguiu Bocage, Marquesa de Alorna e as novas ideias provindas de França. A Santa Inquisição institucionalizara os “familiares”, o Marquês de Pombal os sicofantas, Pina Manique os “moscas”, informadores e delatores que, no século XX, terão grande expressão nos “bufos” da PIDE.
No Liberalismo do século XIX, dir-se-ia que a ferida da intolerância teria cicatrizado. Não, só mudou de face: a Igreja Católica institucionalizou seu Credo como “Igreja da Nação” e o Estado proibiu, por lei, constitucionalmente, todas as manifestações públicas das Igrejas Reformadas que não se dirigissem a estrangeiros a viver em Portugal (cf. perseguições violentíssimas, na Madeira, do bispo do Funchal ao reverendo escocês Robert Kalley). No século XX, é do conhecimento geral o domínio institucional da Intolerância, talvez baste referir que, em 100 anos, vivemos 52 sob regimes autoritários (João Franco, Pimenta de Castro, Sidónio Pais, Oliveira Salazar/Marcello Caetano). Nos últimos 25 anos do século, a avalanche de costumes e valores europeus e americanos amorteceu os ímpetos autoritários de intolerância, mas eis que agora parecem regressar em força.
Neste sentido, não só é oportuna a publicação deste Manual do Bom Fascista como constitui, numa linha irónica, por vezes satírica e até jocosa, um grito social e político de vigilância para que, histórica e sociologicamente, não podendo eliminar-se em meio século uma característica que há meio milénio alicerça a nossa cultura, o estado de espírito de sectarismo intolerante não se transforme em poder de Estado.
Como em outros livros seus, Rui Zink brinca com a língua portuguesa: trocadilhos, paradoxos, subversão do sentido de expressões proverbiais, criação de falsos aforismos, aglutinações e derivações que subvertem a semântica consolidada das expressões, forte uso de paralelismos e antíteses, diálogos carregados de subentendidos, todos orientados pela figura da ironia, constituem a matéria de que se constrói este ensaio destinado tanto a denunciar e a criticar como a despertar o sorriso e, não raro, o riso. Escrevemos “ensaio”, porque explora em todas as dimensões a tese das qualificações necessárias para se ser um “bom fascista” (assim é anunciado no primeiro texto longo, “Uma lacuna preenchida”, anterior à divisão capitular do livro, terminando com uma lista de “Fontes e referências”), mas estivemos tentados a escrever “novela” ou “romance”, tendo como personagem principal aquele senhor sem nome, de bigode e sem olhos desenhado na capa, que nos acompanha ao longo de todo o livro. Tantas e tão múltiplas formas assume hoje o romance, que Manual do Bom Fascista, fragmentário, dispersivo, dividido em “Lições”, pode ser entendido, ao fim e ao cabo, como partes ou desdobramentos de um tema único, explicitado no título. Assim, hesitamos profundamente na classificação deste livro – ensaio ou novela/romance? Porventura, um texto híbrido (o “bom fascista” não gostaria; misturas não é com ele: cada coisa no seu lugar!).
Manual do Bom Fascista é não só uma coleção atual de características típicas do cidadão saudoso do regime do Estado Novo como um autêntico tratado de psicologia do fanatismo a que a intolerância sempre conduz. Enquadrado por um design original e ilustrações de Lia Silva, jogando entre o fundo branco e preto de um modo atrativo, o texto divide-se em cinco capítulos, cada um constituído por verbetes, necessariamente curtos, exploradores das nuances do tema geral do “bom fascista”, intervalados por texto mais desenvolvidos, de fundo preto, de certo modo explicativos das condições sociais e mentais em que aquele floresce (melhor: “medra”, “floresce” é uma palavra muito gentil para lhe ser aplicada).
PS brincalhão: presumimos que a fotografia do autor ostentada na badana esquerda faça parte integrante do cenário do livro: um Rui Zink calvo, de olheiras profundas, barba por fazer, olhar fixo enfurecido, desorbitado do mundo, como quem espreita um momento de intolerância, caindo desalmadamente sobre o leitor.
Rui Zink: o ovo da serpente
Miguel Real escreve sobre Manual do Bom Fascista
Mais na Visão
Parceria TIN/Público
A Trust in News e o Público estabeleceram uma parceria para partilha de conteúdos informativos nos respetivos sites