Embalar (…) é um exercício de esquecimento. É como ver um filme de trás para a frente, consignando narrativas visíveis e uma realidade metódica para as regiões do distante e do não visto, um oblívio voluntário. Também é o restabelecimento de outra ordem, mesmo que secreta. A «aglomeração» (como os físicos chamam a este processo de novas formações químicas) acarreta o agrupamento de elementos improváveis em grupos e identidades redefinidos por via das novas fronteiras da delimitada cartografia do caixote. Se desembalar uma biblioteca é um acto selvagem de renascimento, embalá-la é sepultá-la ordenadamente antes do julgamento aparentemente final. Em vez das colunas intermináveis e instáveis de livros ressuscitados prestes a serem presenteados com um lugar, de acordo com virtudes privadas e vícios caprichosos, o seu agrupamento passa a ser estabelecido por uma vala comum, anónima, que transforma o mundo deles das estentóreas duas dimensões de uma estante nas três dimensões de uma caixa de cartão.
A biblioteca em França foi embalada por vários amigos generosos que acudiram como bons espíritos, para nos ajudar a ultrapassar a nossa relutância. Lucie Pabel e Gottwalt Pankow vieram de Hamburgo, Jillian Tomm e Ramón de Elía vieram de Montreal e ficaram na casa a catalogar os livros, a mapear a sua disposição, a embrulhá-los e a enfiá-los em caixas de cartão. Eles, por sua vez, convocaram outros amigos, que vieram e nos ajudaram durante semanas seguidas, até todos os livros terem deixado as prateleiras e a biblioteca se transformar numa divisão cheia de cubos reunidos no meio de estantes vazias. Quando a Mona Lisa foi roubada, em 1911, acorriam multidões ao Louvre para fitar o espaço vazio entre os quatro pregos que seguravam a pintura, como se a ausência tivesse significado em si mesma. Ali parado a fitar a minha biblioteca vazia, senti o peso da ausência num grau quase insuportável.
Depois de a biblioteca ser embalada e os transportadores virem e enviarem as caixas para o seu local de armazenamento em Montreal, eu ouvia os livros chamarem-me em sonhos. «Não me resigno ao encerramento de corações que amam no solo duro», escreveu Edna St. Vincent Millay. «Gentilmente vão os belos, os ternos, os bondosos; / Silenciosamente vão os inteligentes, os espirituosos, os corajosos. / Eu sei. Mas não aprovo. Não me resigno.»
Para mim, não há resignação possível no acto de embalar uma biblioteca. Subir e descer um escadote para chegar aos livros a empacotar, retirar os bibelôs e as fotografias que se postam como figuras evocativas à frente deles, retirar cada volume da prateleira, guardá-lo na sua mortalha de papel, são gestos melancólicos, reflexivos, com um traço de longa despedida. As fileiras desmanteladas e prestes a desaparecer, condenadas a existir (se ainda existem) no reino nada fiável da minha memória, tornam-se pistas fantasmagóricas para um enigma privado. Quando desembalei os livros, não me preocupei muito em atribuir sentido às memórias ou pô-las numa ordem coerente. Mas, quando os embalei, senti que tinha de descobrir, como num dos meus policiais, quem era o responsável por aquele cadáver desmembrado, a causa exacta da morte. No Processo de Kafka, depois de Josef K. ser detido por um crime jamais especificado, a senhoria diz-lhe que o tormento dele lhe parece «qualquer coisa erudita que não compreendo, mas que uma pessoa também não tem de compreender». «Etwas Gelehrtes», escreve Kafka. Foi isto que a mecânica impenetrável por trás da perda da minha biblioteca me pareceu.
Mas não me quero alongar acerca do motivo de tudo isto. Por razões que não quero recordar, porque pertencem ao sórdido reino da burocracia, no Verão de 2015 decidimos deixar França e a biblioteca que ali tínhamos construído. Foi a conclusão absurda de um capítulo longo e feliz, e o começo de outro, que, mal ousei ter esperança, seria igualmente feliz e pelo menos tão longo. Depois das circunstâncias ilógicas que nos obrigaram a ir embora, desmantelar a biblioteca foi como um acto de contrabalanço semelhante ao de Walter Benjamin após o divórcio. Embalar os livros foi, como disse, um enterro prematuro, e agora tinha de suportar o consequente período de raiva e luto.
Devo explicar que, por natureza, não procuro a novidade nem a excitação. O que me conforta é a rotina, não a aventura. Aprecio, especialmente agora que me aproximo dos 70 anos, os momentos em que não tenho de reflectir nas acções quotidianas. Gosto de atravessar uma divisão de olhos fechados, sabendo, por hábito, onde tudo se encontra. Nas minhas leituras, como na minha vida, não aprecio surpresas. Mesmo em criança, lembro-me de temer o momento numa história em que os dias felizes do herói eram interrompidos por um acontecimento inesperado e terrível. Embora eu soubesse, pelos meus outros livros, que haveria uma resolução (na maioria das vezes satisfatória), gostava de me demorar nas breves primeiras páginas em que a Dorothy vive tranquilamente com o tio e a tia, e a Alice ainda não começou a cair pela toca do coelho. Uma vez que a minha infância foi largamente nómada, gostava de ler sobre vidas estáveis, com um curso normal. E, porém, estava ciente de que sem disrupções não haveria aventuras. Talvez esta ideia fosse tingida pelo pressuposto de que as disrupções — reveses, injustiças, calamidades, sofrimentos — são as condições necessárias à invenção literária. «Os deuses fiaram a destruição para os homens, para que também os vindouros tivessem tema para os seus cantos», diz o rei Alcínoo na Odisseia. Eu queria a canção, mas não a tapeçaria que a precede.
Alberto Manguel
EMBALANDO A MINHA BIBLIOTECA
Tradução de Rita Almeida Simões, Tinta-da-China, 144 pp, 14,90 euros