São múltiplos e um só. E neles confluem o poético, o narrativo e o trágico. Nada mais natural, já que a escrita de Jaime Rocha, 68 anos, corre sempre entre três margens, a poesia, a ficção e o teatro. E a sua “poética é circular”, diz ao JL.
O seu novo livro, Preparação para a Noite, edição Relógio d’Água (72 pp, 14 euros), meia centena de poemas inéditos, escritos nos últimos dois anos, fecha precisamente uma “circunferência”, ligando –se ao inicial Do Extermínio, de 1995, em que ele assume ter encontrado a sua voz própria. É também um regresso à “cidade”, depois de ter deambulado por muitas paisagens – a Tetralogia da Assombração, A Loucura Branca, Anotação do Mal ou A Rapariga sem Carne, entre outros títulos – e memórias, como é o caso do recente romance Escola de Náufragos, em que volta ao mundo da sua infância, na Nazaré, onde nasceu.
O escritor, poeta, dramaturgo e jornalista continua, por outro lado, a escrever os seus monólogos do homem contemporâneo, Ortof. E está a preparar a dramaturgia de O Construtor, peça que escreveu em 1998 e que só agora vai ser representada em outubro, na Quinta da Regaleira, em Sintra. É um espetáculo do Teatro Musgo, com encenação de Paulo Campos dos Reis.
Jornal de Letras: Preparação para a Noite inaugura um novo ciclo na sua poesia?
Jaime Rocha: Se há uma preparação, talvez venha a entrar na noite plena. A minha poética é circular. Depois da Tetralogia da Assombração, que encerrou com Necrophilia, em volta dos pré-rafaelitas, muito focada na ligação de Elizabeth Siddal e Dante Gabriel Rossetti, fechei de alguma maneira um capítulo, e voltei ao ambiente urbano do meu livro Do Extermínio, após 20 e tal anos de outros escritos.
Porquê?
Foi com esse livro que senti que o texto era meu, embora antes já tivesse publicado A Perfeição das Coisas, Beber a Cor, ou A Pequena Morte/Esse Eterno Canto, com a Hélia correia. Independentemente das leituras, dos gostos, das influências, da minha própria evolução, com Preparação para a Noite reafirmo um registo poético que é meu. Com ele fecho uma circunferência que começou em Do Extermínio. Dentro, fica um círculo mais pequeno, correspondente à Tetralogia, uma espécie de planeta dentro de outro.
É então um regresso à cidade ‘natal’?
Exatamente. À cidade obscura, suja, dos becos, dos muros, ao ruído, ao caos, ao rio, ao lodo e à sujidade.
Ao real?
Sim. O real onde o poeta vive e de que se alimenta. O poema nasce a partir da cidade. Um lado mais escuro, mas com as ‘personagens’ a abrirem pequenas janelas: sombra e luz, como sempre na minha poesia. Os meus livros de poemas têm uma narrativa interior, com figuras…
Personagens?
Chamo-lhes figuras para me distanciar um pouco do teatro, das personagens dramáticas.
E não há qualquer coisa de teatral no seu discurso poético?
Há. Por isso, os atores sentem que são textos que podem ser facilmente transpostos para o palco. Mistura-se neles o poético, o narrativo e o trágico. E num discurso que anda permanentemente à volta de duas figuras sem nome, o Homem e a Mulher, um universo a dois em que se vão imiscuindo outras que o vão construindo e reconstruindo, numa mudança constante dentro das mesmas ideias. E neste caso, surgem o Escultor e o Pintor, que vêm reconstruir a cidade. E talvez porque estava a ficar tudo muito bonito, a meio da escrita destes 50 poemas, tive que parar.
Um bloqueio?
Até que me surgiu outra figura, mitológica, aliás teatral, operática, um fauno, um cavalo branco que passou, elemento de rutura que me permitiu continuar o livro. Foi um corte na paisagem que o Pintor e o Escultor construíam. O Fauno vem destruir o belo e trazer mais violência e velocidade, uma vitalidade à cidade, portanto uma nova força ao poema.
Escreve os poemas logo como uma narrativa contínua? Como foi esculpindo o livro?
Se fossem soltos, talvez ficassem prontos mais depressa. Mas é como se fossem um poema só e acaba por ser um trabalho muito lento. Leio e releio, corto, adapto. Até chegar ao osso. Primeiro surgem muitas imagens, alegorias, e tenho o cuidado que não se matem umas às outras e que as palavras, algumas que são alicerces, não surjam como repetições. É um poema sempre em construção. Por isso, levei dois anos a escrevê-lo, embora pelo meio tivesse escrito um romance, Escola de Náufragos e Mulher Inclinada com Cântaro, um pequeno livro igualmente localizado no ambiente de mar, nas paisagens da Nazaré, editado na Rota de mar. E ainda O Vulcão, o Dorso Branco, uma descrição poética circunscrita aos Capelinhos, a uma visita ao Faial, para a Averno.
Já está a escrever outro livro?
A poesia nunca acaba e fica sempre uma porta aberta para outro livro. E também já começo a trabalhar noutro romance.
Continuação d’A Escola de Náufragos, retomando agora a atmosfera da sua adolescência?
Sim, ficou em aberto essa possibilidade e talvez continue a trabalhar a questão do destino: que vão fazer aqueles filhos de pescadores, marcados pela morte, pelo luto? Entretanto, continuo a trabalhar sobre Ortof, uma personagem que criei e que é o homem de hoje, em pequenos monólogos, peças curtas, de um ou dois personagens, pequenos textos que vou atualizando, construindo um discurso trágico-cómico, de que gosto muito no teatro. E estou a preparar, com o Paulo Campos dos Reis, a dramaturgia da minha peça O Construtor.
Que só agora irá ter a sua estreia em palco?
E com uma certa atualidade. É uma peça difícil de montar, com muitas personagens, escrita quando a Europa estava a ser construída. E o que tínhamos nós para entrar nessa construção? Ossos. Era o que podíamos oferecer. É a ideia da emigração. Agora, o texto vai ser representado numa altura em que a emigração continua atual e a Europa está a desconstruir-se. JL