Depois da publicação de Naquela Língua, com chancela da Elsinore, a Cotovia publica, passados poucos meses, uma outra coletânes do que de mais recente, na poesia, se escreve no Brasil: É agora como nunca – Antologia incompleta da poesia contemporânea brasileira, com orgenização e apresentação de Adriana Calcanhoto. Alguns poetas aqui reunidos comparecem naquela ‘reunião’ e outros têm já algum reconhecimento crítico, participando em revistas e publicando em editoras que, no eixo Rio/São-Paulo/Brasília, têm presença no mercado. Publicar-se agora esta nova coletânea é sinal de que há uma atenção quanto ao que do outro lado de lá se faz. E talvez não seja secundário registar certas semelhanças de discurso e de intenção entre várias vozes portuguesas e brasileiras, porque tal significa que nesse mercado dos leitores de poesia, em particular aqueles que a leem e têm entre os 20 e os 30 anos, há um padrão de preocupações, ou se quisermos de formas de estar perante o poético, que formam um gosto, uma estética, uma linhagem. Julgo ser necessário cartografar esse gosto, determiná-lo, tanto quanto possível, à luz de mudanças sociais que vão ocorrendo a nível global e que, em Portugal e no Brasil, assumem especificidades de facto. Nas oscilações próprias de algo tão indistinto quanto o gosto (que se deve discutir, diga-se), a lição de Gillos Dorfles permanece atual: cada época tem o se gosto, mas o gosto, se é reflexo da época, constrói a própria época e nela participa.
Alterações políticas recentes (no Brasil a rutura com as políticas de Lula-Dilma e a passagem para um governo não legitimado pelo voto e com tintas de autoritarismo, como é o caso do de Temer); a sensação de que o esfacelamento social é sinal de esfacelamento da própria ideia de poesia nobre ou nobilitante, cada vez mais arreigada à ideia de que tudo, no hodierno mundo estilhaçado, é relativo; a escolha por um dizer imediato, instantâneo, contemporâneo porque tudo se resume a um estar aqui sem grandes preocupações metafísicas, o corpo, o sexo, o desencontro, os cafés, as compilações de poesia que se leem e deitam fora, o poema/história, escrito para ser lido entre ironia, sarcasmo, autopunição ou pedrada atirada à cara de quem ouve, isso tudo se inscreve numa postura que é pós-moderna, decetiva. Essa a linhagem destes autores.
Tal está a par da derrisão das últimas crenças neoclássicas (Estado, Deus?) que pudéssemos vislumbrar. E o poeta, vivendo no grande Titanic que é o planeta, pode escrever, como Josoaldo Rêgo, que temos os dias contados, mesmo que haja quem sonhe, a ler Machado, “a liberdade das coisas calma” (Sylvio Braga). Ao lermos Alice Sant’Ana, Marília Garcia, Angélica Freitas ou Fabiano Calixto, Thiago E, e ainda Victor Heringer, as mais originais vozes poéticas, com Bruna Beber e Domingos Guimaraens, mergulhamos num universo de linguagem marcadamente sanguíneo, feito de naufrágios quotidianos.
Um poema de Guimaraens isso mesmo destaca: “na hemorragia em fúria das ondas/ estes gigantes de sal e lágrima/ que se elevam da planície espelhada/ como navios suicidas// no desfalecer da espuma em sangue e luz/ nas tensões de fluorescências inconcebidas/ na potência do rugir desta concha terra/ na visão destes fluidos deslizantes// no estrondo do explodir dos corais/ no desespero dos braços marinhos/ em se agarrarem à última réstia de areia/ me encontro aqui/ náufrago na terra” (p.110). Por isso, como escrevem Leandro Durazzo e Bianca Lafroy, a vida da poesia vive de uma pergunta permanente: até onde é possível dizer a dor com palavras que não são objetos reais, concretos que possam albergar, ir contra, destruir ou reconstruir o real absurdo?
Mais alegórica do que metafórica, mais auto-depreciativa que celebratória, esta poesia coloca na mesa o funcionamento do texto: Bruna Beber questiona a crise da representação, declarando, consciente, que “todas as leituras de poesia/ são equivocadas”. Partindo de cenas do dia-a-dia, Bruna cultiva o poema como resistência ao tédio, o mesmo sucedendo com Bruno Molinero que faz do poema a reportagem efabulada de uma realidade queimada. A linguagem pode sobressaltar esse tédio, jogando-se contra o real a ambiguidade que o desmonta (“se o leite por acaso caísse/ da sua mão no chão da secção de laticínios/ bastava eu perguntar seu nome e fazer/ alguma piada envolvendo a expressão horar/ pelo leite derramado” (p.27)), lê-se em Gregorio Duvivier.
Electrocardiogramas, estes poemas também se pretendem jogados contra a literatura (Ismar Neto), contra o fácil que a poesia pode conter (“fazer poemas como edifícios/ por onde ninguém suba”, diz Leo Gonçalves), às vezes com imagens e jogos de significante que bloqueiam o literal e o suspendem. Neste particular vale a pena ver o exercício de Thomaz Ramalho que escreve sobre o acordo ortográfico, esse “desacordo fonético”, e faz do texto o espaço de reinvenção gráfica, semântica, invetivando essa “poesia-concreta-piada”. Paródia, brincadeira, o registo é, não raro, familiar, corrente, jogo inconsequente (Corsaletti e a figuração do poeta, visto por um outro como equívoco coveiro, avatar de uma qualquer imagem vinda do oitocentismo), fraseado simples, sem grandiloquências, apontamento fotográfico (Omar Salomão: “Brincadeira no ombro/ sem camisa/ coberto de poeira/ devagar/ desce a ladeira” (p.105)).
O que significa, então, escrever um poema bem contemporâneo? Não ler Barthes nem os clássicos e preferir a inação de um poema que se basta na sua forma de linguagem. Daí o lado performativo surpreendente na prática textual desta geração nova. Temos textos breves (Ramon Nunes Mello), poemas que herdam qualquer coisa do futurismo-dadaismo (Marília Garcia) também porque praticam o verso longo, o poema-prosa (as lições de Baudelaire e de Aloysios Bertrand continuam em voga no que tange à escrita da prosa em forma de poema, ou vice-versa?). Mas resta saber se o poema feito prosa não é essa pausa que encaminha as palavras para esse silêncio que a poesia persegue (Flávio Morgado isso mesmo questiona). Carina Castro e Donny Correia (poeta a seguir com muita a atenção, pelo fundo erótico-lírico e certa construção imaginística), Catarina Lins, Christovam Chevalier, Laura Liuzzi, eis outros a ter em conta. Como escreve Adriana Calcanhoto na breve apresentação este livro mostra bem a lógica do poético como “provocação no pós-tudo-enfim-por-vir”.JL
Nova poesia do Brasil: Pós-tudo-enfim-por-vir
O livro É agora como nunca- Antologia incompleta da poesia contemporânea brasileira,chega agora às livrarias. Trata-se de uma coletânea, publicada pela Cotovia, do que há de mais recente na poesia brasileira.
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