Em O Lago Avesso (2013), Joana Bértholo (JB) avisara-nos que, numa biografia, mais importante do que a realidade concreta da vida é o que, pertencendo-lhe, lhe é aparentemente paralelo ou acessório; que a conexão da vida se lê através da desconexão da narração e o sentido lógico por via do absurdo da descrição; que a coesão se enlaça através da incoerência que a relata. Em Inventário do Pó, a autora vai mais longe: a luz lê-se pela sombra, não pelo foco do sol; a existência pelo pó que abandona no caminho (título do romance); a mente, não pelo efetivamente cumprido e realizado, mas pela intensidade fulgurante do desejo. É uma arte da biografia nunca praticada em Portugal, que recusa prestar um sentido único à existência, aposta no fragmento de vida como síntese concentrada da totalidade dela, no fio agudo da lâmina para evidenciar a profundidade porque espeta e fere.
Deste modo, Inventário do Pó é e não é a biografia romanceada de René Bértholo – é, porque a ele se refere, como já explicaremos; não é, porque o biografa em modo paralelo, falando dele como se falasse de outrem ou, até, de outras coisas, evidenciando uma proliferação de referências de diversa proveniência (mas todas ligadas à arte). Digamos que o romance consiste num exímio exercício de imaginação literária, uma espécie de plataforma estética onde imagens, símbolos, textos, sons (sim, sons imaginados), desenhos, são mobilizados em torno de um centro chamado – justamente – “René Bertholo”, combinando diferentes e improváveis laços estéticos.
Inventário do Pó é um texto fluido, fragmentário, cada trecho um estilhaço de movimento, som, imagem, representação, fusão ou reunião de outros textos, um texto-aventura, não completo, no e pelo qual os diversos protagonistas, sobretudo o leitor, buscam caminhos e soluções, um texto sem ordem cronológica nem coerência lógica porque nada hoje social e culturalmente acontece com coerência lógica. Um texto precário, porque todos somos existencialmente precários, um texto-cruzamento de outras artes, porque a nossa mente é hoje constituída pelo cruzamento de múltiplos impulsos exteriores, eletrónicos, pictóricos, oníricos, personagens-símbolos, pedaços repartidos de existência…
Não se procure nele, pois, uma relação direta entre vida e obra, realidade e texto, existência e narrativa. Isso seria, digamos assim, para os historiadores oficiais ou os romancistas realistas, que a autora não é nem pretende ser. Para mais, existiu desejo de experimentar o mundo, mas não fio contínuo certo e racional na vida do biografado. Então, por que transfigurar em discurso razoável uma vida totalmente irrazoável? Por que não experimentar mostrar o irrazoável pelo irrazoável, o incerto pelo incerto, o incomedido pelo incomedido, fora de toda a harmonia, ou evidenciar uma nova harmonia do todo como efeito paradoxal da desarmonia das partes? A vida de quem nunca teve bom senso por um texto insensato? Eis a essência de Inventário do Pó: narrativa incerta, irrazoável, incomedida, insensata, desarticulada e desarmónica nas partes e, paradoxalmente, bela e harmónica no todo.
Estruturalmente, a sua forma estética equivale à seriação dos temas musicais do único álbum gravado por René Bertholo: “Um Argentino Deserto”. Cada capítulo do romance corresponde, assim, a um tema musical. O autor não estava certo de poder chamar “música” ao resultado da gravação: “Construiu uma makina que fazia mosika e passados alguns anos chegou mesmo a dar alguns desconcertos” (p. 277). Cada capítulo assume a forma de um conto que, direta ou indiretamente, sugere um momento, um período, um episódio da vida de René Bertholo. Em cada capítulo, introduzido por um texto explicativo e breves textos inspirativos, narra-se uma história diferente.
No primeiro, por exemplo, a infância de seu tio, Joana identifica o conhecimento com sensações de cor: “Segunda-feira é sempre encarnada, terça é azul e sexta é violeta. Sábado é bordô. Domingo é preto se chove mas cinza se faz calor. A palavra “azul” é azul mas a palavra “branco” é bege” (p. 21). O segundo, a história do encontro dos surrealistas na década de 40 no Café Gelo, surrealiza um diálogo de Ortega y Gasset consigo mesmo (é um dos melhores contos do romance). No terceiro, evidencia-se o desencontro de René Bertholo com o mundo, a sua construção de “mecanismos” (p. 60) que criam o “absurdo”, a sua visão do mundo (pp. 67 – 68) e a descrição de uma cena “ilógica” no deserto (um homem que encontra um velho, um velho que encontra um homem, salvam-se mutuamente e não são senão a mesma pessoa)…
Joana Bértholo tem uma virtude literária: não se assume como vanguarda das letras e possui uma escrita clássica e um conhecimento soberanamente informado sobre os temas escolhidos. Porém, sob o seu estilo clássico, recheado de palavras abstratas e descrições eruditas, pulsa um efetivo desejo de desconstrução que finda por subverter escrita, forma e estilo: sem ferir a sintaxe normal, a escrita é subvertida por via de afinidades semânticas novas ou inusitadas entre as palavras, espantando o leitor; a forma, por via da criação de novas e singulares estruturas narrativas, e o estilo vivem, neste como nos seus restantes romances, de um equilíbrio entre a descrição realista, a exploração psicológica, a utilização de símbolos e a fusão de tudo em tudo, isto é, de todas as formas de registo escrito (cf. cap. 6, por exemplo), como se a romance fosse um vasto laboratório de experimentação de ideias pelo qual, provocando e rompendo as rotinas do mundo, este se desse a conhecer de um modo mais explícito, menos velado.