Depois de ter levado os seus leitores a revisitar diferentes momentos da História de Portugal (As Memórias Secretas da Rainha D. Amélia) cruzando-a com a de outros países, a do Brasil em A Voz da Terra e A Guerra dos Mascates, a de Goa em O Feitiço da Índia ou a de Macau em A Cidade do Fim, Miguel Real desafia-nos agora a acompanhá-lo numa viagem inesperada e surpreendente a um futuro distante em que as nacionalidades e as nações deixaram de ser as matrizes de identificação dos indivíduos e das sociedades. Nesse futuro, o mundo está dividido em quatro estados: “três impérios mundiais – o Asiático, o Americano e o Russo” e a Nova Europa instaurada em 2184 em resultado da reorganização da Europa, tal como existia no século XXI, devido às convulsões originadas pela Grande Fome.
O Último Europeu – 2284 enuncia em frontispício a linhagem na qual se inscreve. Afirmando-se como homenagem ao texto de Thomas More, Miguel Real propõe-nos uma releitura de A Utopia, apresentando-nos a sua representação da sociedade utópica, retratando e descrevendo os últimos anos de existência da Nova Europa, uma sociedade que, a acreditar e concordar com o narrador, atingiu o estado de perfeição, sendo “totalmente comunitária, isto é, igualitária e justa”. Os neoeuropeus vivem sem qualquer obrigação (laboral, sentimental, reprodutiva, sexual…), pautando-se a sua existência pela concretização dos mais ínfimos desejos, numa apologia do ócio e do prazer. Todas as ações praticadas têm em vista o bem comum, promovendo o comunitarismo e a coletividade, sendo que qualquer atitude que comprometa esses fins é contrariada e alterada. Para tal, os neo-europeus contam com a presença titular, protetora e vigilante do “Grande Cérebro Eletrónico” que mais do que as suas vidas controla os seus pensamentos.
Se esta breve apresentação do romance evidencia os laços que se entretecem entre a ficção de Miguel Real e a de Thomas More, deixa também adivinhar outras conexões não menos significativas. Com efeito, em O Último Europeu – 2284 ressoam igualmente ecos de outra obra maior da cultura mundial, refiro-me ao texto de George Orwell escrito em 1949 e intitulado 1984. Os diálogos que se constroem entre estes dois textos começam desde logo no subtítulo do romance que indica o ano em que a Nova Europa sucumbiu ao domínio do invasor oriental, cem anos depois de ter sido instaurada e duzentos anos depois da Grande Fome ter fustigado as populações. Não terá sido, como julgo, uma pura coincidência se os grandes marcos temporais dessa nova sociedade são sempre o ano de 84 de sucessivos séculos, assumindo-se antes como uma indicação remissiva para o texto e a mensagem do romance de Orwell, que se prolonga e consubstancia no entrecho de múltiplas formas.
Com efeito, e citando apenas um exemplo, o Grande Cérebro Eletrónico que acompanha os neo-europeus é estranhamente parecido com o Grande Irmão da Oceânia, sendo ambos entidades controladoras que estão para além da vida humana, num plano paralelo, fora de espaço físico em que evoluem os indivíduos, e a partir do qual tudo veem, tudo ouvem, tudo sabem e tudo controlam. Mesmo se as suas ações sobre os homens têm fins diferenciados (em busca do poder absoluto no caso da sociedade criada por Orwell, como instrumento de promoção do prazer e bem estar no texto de M. Real) a omnipresença, domínio e manipulação da realidade são idênticos.
Esta sociedade que acreditava ter atingido o grau supremo de perfeição e segurança vê-se inesperadamente confrontada com a aniquilação eminente perpetrada pelo império Asiático que, confrontado com a sobrelotação do seu território, empreende a ocupação das terras da Nova Europa, dando origem a um novo regime de governança: o Absolutismo Oriental. Incapazes de combaterem os chineses por questões de princípio e educação, mas conscientes de que tinham o dever ético de legar a civilizações vindouras os conhecimentos adquiridos e o modo de vida em sociedade construído, optam por constituir um grupo de 60 pessoas que tem por missão refundar a Nova Europa noutro local, entregando-se a restante população à morte certa.
A liderança do grupo é entregue a um homem, o Reitor, que dedicou a sua já longa vida ao estudo do livro e da palavra escrita, objeto e prática em desuso nessa sociedade, o primeiro considerado uma relíquia do passado, a segunda uma inutilidade já que a comunicação se fazia através da mente. Nele recai igualmente a tarefa primordial de testemunhar, através da redação da sua Crónica da Nova Europa, das memórias da civilização destruída pela “ganância asiática” e da história da construção e aniquilação (que veremos, será total) de um novo conceito de sociedade.
Para a instalação dessa comunidade foi escolhida um território inóspito e longínquo, perdido no meio do “Mar Americano”, a ilha do Pico, apenas habitada por uma família descendente dos antigos ilhéus. Nesse local, vão descobrir que, para poderem sobreviver, precisam de reaprender tudo o que antes consideravam bárbaro e ultrapassado em termos civilizacionais. O regresso às práticas anteriores à criação da Nova Europa constitui-se como um longo e tortuoso processo de viagem ao passado que se inicia com a reapropriação da fala para comunicarem. Reaprendem igualmente a importância dos sentimentos, da identidade individual, da organização familiar, descobrem o prazer da posse, mas igualmente a dor e a degradação físicas. Apesar dos esforços, a utopia de criação da Novíssima Europa no Pico não logrou êxito, já que a existência da comunidade interferiu com os interesses de outra força imperial.
Muito fica por dizer de um texto que surpreende e cativa o leitor até à última página. Mais do que uma releitura de textos fundamentais da literatura internacional, o romance de Miguel Real constitui-se como uma poderosa reflexão literária e filosófica acerca da sociedade atual. Em O Último Europeu – 2284, a efabulação torna-se lugar de interrogação trazendo para a discussão os grandes problemas que atravessam o nosso tempo.
O Último Europeu. Miguel Real. D. Quixote. 280 pp. 15,90 euros