No palco centenário de Orpheu, os atores secundários tendem a ser esquecidos. Como se fosse possível falar de protagonistas (Pessoa, Campos, Sá-Carneiro, Almada) sem o concurso dos outros, ditos menores. Com quem contracenariam? Orpheu, como, de resto, qualquer revista a sério, vive de uma dinâmica interna, não é uma mera exibição de vozes desencontradas. Ainda que não se assuma como órgão de um qualquer movimento literário e artístico e que Fernando Pessoa tenha declarado o individualismo absoluto de todos os colaboradores, é precisamente da reunião dessas individualidades e da interacção dos seus caminhos particulares e irrepetíveis que se alimenta, afirmando-se como espaço inovador.
Cada ator representa-se a si próprio, mas o seu papel contribui para um conjunto heterogéneo e, apesar de tudo, harmonioso. Cada entrada em cena é calculada, não deixada ao acaso. Assim, por exemplo, o nº 2 teria sido preparado, para usar as palavras de Maria Aliete Galhoz, como “contra-reacção”, estimulada pela reacção do público à novidade do primeiro número (onde pontuavam, ao lado dos treze sonetos de Alfredo Guisado, os desconcertantes “Frizos” de Almada Negreiros ou a “gaguez” de O Marinheiro de Fernando Pessoa). Se a literatura do nº1 fora recebida, com chacota, como produto escandaloso de mentes loucas, brindar-se-iam, agora, os leitores ignaros com os poemas herméticos, “incompreensíveis” na sua sintaxe aberrante e dissolvente, de um Ângelo de Lima, ele sim, louco real, internado há anos em Rilhafoles. Mas também com a novela vertígica, “Atelier” (anunciada como pertencente a um livro inédito com o sugestivo título de Devaneios e Alucinações), da autoria de um estranhíssimo Raul Leal, ou com os poemas de uma enigmática Violante de Cysneiros, apresentados, em nota, como fruto de um “anónimo engenho doente”, aguçando a curiosidade sobre a verdadeira identidade do autor – Armando Côrtes-Rodrigues, que colaborara, em seu próprio nome, no número inaugural. Sem esquecer a apoteose gráfica do poema “Manucure” de Mário de Sá-Carneiro ou a esmagadora “Ode Marítima” de Álvaro de Campos e o experimentalismo interseccionista de “Chuva Oblíqua”, de algum modo a radicalidade das propostas contrasta com o puro simbolismo de um Eduardo Guimaraens ou com o simbolismo decadentista e “mallarmeano” de um Luís de Montalvor, prova provada de que Orpheu se pretende um puzzle das tendências artísticas que cruzam os princípios do século XX.
Por outro lado, literatura e pintura dialogam, prolongando, por assim dizer, as conversas de café, onde poetas e artistas plásticos trocam experiências. Os “hors-textes” de Santa-Rita Pintor não são simples elementos decorativos ou ilustrativos das composições literárias: afirmam-se enquanto peças autónomas, que falam por si e assumem um vanguardismo que a literatura só dificilmente acompanha.
A participação dos autores menos conhecidos, todos eles à procura de um lugar próprio, contribui decisivamente para a estranheza desse corpo que Orpheu constitui e do qual nos ficou um “retrato de grupo”, com muitas faces. De um dos cantos desse retrato, se me é permitida a imagem, parece, no entanto, esgueirar-se uma figura singular: Raul Leal, o deslembrado filósofo de Orpheu. E este é, certamente, um bom exemplo para mostrar como o esquecimento se afigura, quase sempre, uma tremenda injustiça.
Se é certo que Mário de Sá-Carneiro considera a citada novela “Atelier” como “o limite da fraqueza” (em carta para Pessoa, datada de 31 de Agosto de 1915), também é verdade que, numa outra carta de 5 de Novembro do mesmo ano, chega a lamentar que “o rapazinho [Leal] seja um pouco Orfeu de mais”. É a confissão de que Leal não cabe nos limites das páginas da revista. Aliás, é em anos posteriores e em outros lugares (Portugal Futurista, Athena) que dará continuidade à sua verve “orphaica”, elogiando o “abstracionismo futurista” de Guilherme de Santa-Rita e fazendo o louvor da “Loucura Universal” ou do “Ultra-Ser”. O seu vertiginismo transcendantal – concepção filosófica que data de antes de Orpheu (1913) ultrapassa, de facto, o sensacionismo pessoano, conceito fundamentalmente literário que se esgota no próprio ato de escrita. Compromete a Totalidade do Homem, na sua “ambição estonteante de arrebatar divinamente o Universo”, de se sentir Deus.
Raul Leal fornece, de certa forma, o suporte filosófico para a plural conceptualização poética de que Orpheu se faz eco. É por esta altura também que o filósofo terá começado a conceber o seu Paracletianismo, religião do Espírito Santo, ou do Quinto Império preconizado por Pessoa. Procura a “suprema Síntese”, traduzida no “estado supremo da Vertigem”, o que o leva a propor (em 1921) ao fundador do futurismo, Marinetti, a Igreja Paracletiana, ” essencialmente Futurista” que alargaria os horizontes algo estreitos do movimento italiano. Conjugando a estética futurista com a matriz esotérica das suas propostas filosófico-religiosas, Leal encarna, sem dúvida, o que de mais excessivo e arrebatador Orpheu anuncia. O verdadeiro “escândalo” acabaria por ser, afinal, protagonizado, por um actor secundário, já fora do palco.. J
· Investigadora, ensaísta e prof.ª da Universidade Nova de LisboaRetrato de grupo, com filósofo ao fundo…