Manuel da Silva Ramos, autor que não necessita de apresentação, acaba de publicar o romance
Impunidade das Trevas, um a ferocíssima crítica ao estado de coisas em Portugal, sobretudo à elite política e administrativa que dirige o país.
Manuel da Silva Ramos (MSR) navega, estilisticamente, no oceano da sátira. É, aliás, hoje, no nosso país, o seu grande cultor, em conjunto com Rui Zink.
Sobre a sátira, escreveu Rebecca Catz nos idos da década de 70: “Sátira é, quanto a nós, retórica moral, e o seu propósito o de reformar [a sociedade, os costumes]. Ao mesmo tempo que critica males [descrevendo-os, narrando-os de um modo exemplar], estabelece o modelo positivo e aponta inexoravelmente o caminho para normas de moral elevada” (Rebecca Catz, A Sátira Social de Fernão Mendes Pinto. Análise Crítica de Peregrinação, 1978, p. 15). Numa visão mais recente, Carlos Nogueira, em A Sátira na Poesia Portuguesa (F. C. Gulbenkian, 2011) rejeita a dicotomia entre texto sátiro e texto lírico, dando a primazia conceptual a este, no qual, derivativamente, a sátira vem a entroncar.
É justamente o que acontece com os romances de MSR – o elemento satírico do texto, mesmo jocoso, chistoso, de denúncia social, converte-se num pronunciado lirismo, seja devido às propostas de retificação dos elementos malignos da sociedade, seja à ardência sentimental posta nas acusações. Impunidade das Trevas não é exceção. Assim, tanto pode ser incluído no estilo satírico quanto no lírico, consoante destaquemos mais um ou outro dos dois elementos da composição do romance.
Porém, na obra de MSR, ambos os estilos se subordinam à oficina surrealista do autor (cf., por exemplo, cap. 9), sua casa maior no panorama atual do romance português desde a publicação, em 1968, de Os Três Seios de Novélia. O irónico jogo de imagens da capa de Impunidade das Trevas aponta justamente para este universo literário, evidenciando, surrealisticamente, que a “vitória” do atual “desígnio” austeritário nacional, encarnado pelo governo de Pedro Passos Coelho e imageticamente referenciado pela caravela quinhentista, se firmará, se tudo seguir como tem seguido, numa queda profunda num abismo de águas tumultuosas, porventura gerador de igualmente profundas revoltas populares, como o deseja Domingo Souto.
Domingos Souto, professor de Literatura Portuguesa nas Universidades de Montpellier e Aix-en-Provence, apaixona-se por Camila, acompanhante sexual de luxo de altas figuras militares, políticas e empresariais do regime. As descrições dos atos sexuais de Camila evidenciam os traumas e os recalcamentos psíquicos dos elementos da elite nacional, compensados tanto por obsessões libidinais as mais diversas, quase todas elas do domínio da impotência, quanto servem, pisquiatricamente, de causa última para a tomada de medidas políticas e empresariais repressivas sobre a população.
Sociologicamente, o Poder consiste na ação coativa de uma instituição sobre a construção do espaço de liberdade dos cidadãos, constrangendo a ação destes, forçando-os a seguir um sentido exclusivo. É o que manifesta a atual maioria política em Portugal quando insiste não existir alternativa às medidas da sua administração. Ao longo do romance, MSR opõe (cf., por exemplo, cap. 7) a revolta do riso e da pulsão individual de liberdade a este domínio universal da tecnocracia e da burocracia governamental.
Neste sentido, Impunidade das Trevas estatui-se igualmente como um libelo jogado contra o coração do Poder, uma fortíssima acusação e denúncia políticas contra a imagem do Estado simbolizado na dupla Passos Coelho/Cavaco Silva. De facto, ao evidenciar a profunda alteração política surgida em Portugal nos tempos mais recentes, pela qual o cidadão comum perdeu todo o seu valor ético relevante, a sua importância enquanto pessoa moral, estatuindo-se exclusivamente como peça de uma máquina de confisco fiscal do Estado, simbolizado nos diversos orçamentos de Estado desde 2008, este romance não pode deixar de possuir uma dimensão política, já que foram os políticos que, dominando a máquina administrativa do país, provocaram esta crudelíssima violência do Estado sobre e contra os cidadãos, esmagando-os e reduzindo-os a um estado de sonambulismo. Trata-se, portanto, não só de um romance de denúncia e revolta contra a omnipotência financeira da troika sobre a soberania nacional como, igualmente, de um verdadeiro libelo contra o abuso de poder das elites portugueses, acusadas de subservientes e traidoras.
Do mesmo modo, o título do romance joga com as sombras que têm afetado a história cultural de Portugal, invocando as “Trevas”, isto é, o tempo em que as elites nacionais (religiosas – Inquisição; políticas – século XVIII, D. João V; económicas – Estado Novo) reprimiam duramente a população, afastando-a das regalias obtidas pelos períodos da Pimenta, da Escravatura e do Ouro, ficando historicamente impunes (“Impunidade”). Tratar-se-ia de um novo período de impunidade.
Hoje, primeiro semestre de 2015, o Estado, constituído por uma classe de homens de baixa condição cultural e de nível ético e moral medíocre (mas de alta condição financeira), de coração de pedra, como Camilo Castelo Branco dizia do Marquês de Pombal, totalmente insensível ao sofrimento alheio, considerando o povo como uma populaça rude, preguiçosa, ignorante e supersticiosa, para a qual é suficiente um pedaço de pão e uma “alegria” de quando em vez (Cavaco Silva), que o futebol e as cerca de uma dúzia de telenovelas por dia satisfazem, afirma-se explicitamente contra o cidadão, não ambiciona auxiliá-lo, prestar-lhe sequer as condições mínima de sobrevivência, mas castigá-lo por presumíveis culpas havidas no passado (a tese de que os portugueses viveram acima das suas possibilidades) e por presumíveis “defeitos” de personalidade própria, como a preguiça, o desleixo, a indisciplina e a desorganização no trabalho face a horários e a objetivos de produção.
Impunidade das Trevas afirma-se justamente contra esta situação social de impunidade histórica, apelando à população que se liberte de um estado social de sonambulismo, se revolte, saia às ruas e as ocupe (último capítulo: até os mortos devem ressuscitar para ajudarem a revolucionar o aparelho de Estado e expulsar a elite que dele se apoderou para benefício próprio).