Dois anos depois da sua abertura, a Fundação José Saramago, que tem a sua sede na Casa dos Bicos, em Lisboa, mantém-se fiel ao espírito que a fez nascer. Uma “casa viva”, para “desassossegar” e “mobilizar” consciências, diz Pilar del Rio, a viúva do escritor, que fala ao JL sobre o passado, presente e futuro da Fundação, a que preside, e do último livro (inacabado) do nosso Nobel da Literatura, Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas, o livro de José Saramago, nas livrarias a 23 de setembro.
Jornal de Letras: Como surgiu a decisão de publicar o romance inacabado de José Saramago?
Pilar del Rio: A decisão de publicar o que o escritor estava a escrever quando a morte lhe chegou é tão natural como respirar, talvez pudéssemos dizer porque demorámos tanto para torná-lo público… E essa demora também é compreensível emocionalmente: há sempre uma tentativa de reter o instante, é como se com a publicação se escapasse o último suspiro. Mas os leitores têm o direito de ler e de se reencontrarem com a última experiência do escritor.
A edição inclui um texto do escritor italiano Roberto Saviano, outro do espanhol Fernando Gómez Aguilera, e a capa é ilustrada por Günter Grass. Em que medida estas diferentes ‘colaborações’ se relacionam com o livro?
José Saramago sempre disse que escrevia para desassossegar e que estender esse trabalho à ação pública era, para ele, um ato moral. Por isso pensamos que as colaborações de Grass, impagável; a de Saviano, que vive escondido de tantas ameaças; a de Gómez Aguilera, que foi recebendo confidências do trabalho e da urgência de José Saramago, fazem do livro um torpedo contra a indiferença. Porque se não fôssemos indiferentes, não toleraríamos a violência nem permitiríamos que a guerra seja um método. Não o é.
Como vê Alabardas, alabardas, Espinargas, Espingardas no contexto da obra de Saramago?
É um livro de personagens, cada um com a sua própria trajetória, e a ação decorre do encontro das personagens num determinado contexto. Está, sem dúvida, à altura dos melhores momentos saramaguianos, do estilo que caracteriza a sua obra. E tem uma escrita de uma leveza extraordinária, embora trate de um tema tão duro. Uma vez mais, Saramago indaga na alma humana, nos comportamentos que nos fazem ser como somos, às vezes tão absurdos. E, como nos outros livros, a mulher tem um papel fundamental, é ela quem desencadeia a ação e a sustenta.
O que podemos esperar da primeira sessão de apresentação?
Será, a 2 de outubro, no Centro Cultural de Belém, um ato contra a guerra e todas as violências. Este romance é um posicionamento a favor do sentido comum e da resolução racional dos conflitos. Como Saramago escreveu, “a paz é possível se nos mobilizarmos por ela, nas consciências e nas ruas”. Assim é, mobilizados estamos.
A Fundação tem também desempenhado esse papel ‘mobilizador’? Que balanço faz destes dois anos de vida?
Que a Casa dos Bicos respira, está viva. E assim a sente quem a visita.
Quais foram, para si, os momentos altos da programação, até agora?
É difícil dizer, tendo em conta uma programação tão ampla de apresentação de livros, debates, concertos, sessões de leitura, exposições… Gostei muito do filme que fizemos com a leitura da Declaração dos Direitos Humanos em todas as línguas, ou da publicação de A Estátua e a Pedra e de Democracia e Universidade, duas conferências de José Saramago que integram uma coleção que terá mais novidades este trimestre. Também é gratificante ver como cresce a revista de cultura Blimunda, e como aumentam os pedidos de instituições de outros países para colóquios internacionais. Enfim, caminhamos.
Recorda-se de algum ‘episódio’ que a tenha marcado especialmente?
As sessões de teatro semanais, para estudantes, emocionam-me muito: ver como os jovens são recebidos pelos atores, à porta, e introduzidos desde o primeiro instante à obra que vão ver no auditório; ouvir os comentários e saber que ficam motivados para a leitura. Estas peças estão a cargo do grupo Éter, que representa Memorial do Convento, e da associação artística Andante, que faz uma recolha da obra no espetáculo Quem quer ser Saramago. Também gosto de ver como as pessoas se reconhecem na exposição permanente [José Saramago. A semente e os frutos], nos livros lidos, nas fotografias, nas declarações políticas. E agrada-me saber que o elefante Salomão percorre Portugal num espetáculo que mais do que teatro, é a boa notícia de que muitos lugares estavam a precisar. A Viagem do Elefante é um maravilhoso espetáculo do Acert, com música ao vivo de Luís Pastor, e a colaboração da comunidade de cada sítio por onde passa, que se prepara durante uma semana para integrar o elenco.
E nos próximos meses, o que podemos ver?
Além da apresentação do livro inacabado de José Saramago, vamos celebrar o centenário de Julio Cortázar; viver o Dia do Desassossego; apresentar a revista académica semestral de estudos saramaguianos. Isto entre várias outras iniciativas de caráter sociopolítico, que estão em marcha.
Tais como?…
Três projetos internacionais relacionados com responsabilidade cívica, jornalismo e literatura. Mas como ainda são projetos-sonho não quero adiantar mais.
‘Desassossegar’ mantém-se, então, como o grande desígnio da Fundação…
Claro. Quando lemos um bom livro, sentimo-nos mais lúcidos e capazes. Creio que o mesmo acontece quando visitamos a Fundação e as suas propostas: sentimo-nos mais prontos para as nossas responsabilidades. Isto (o mundo) não vai bem, e não ficará melhor por desígnios de deuses, mas sim pela vontade dos homens. Acredito na força da vontade. Sei que todos os dias tentam adormecer-nos, para que não nos apercebamos da dimensão do desastre; mas também sei que temos que reagir, nós, os povos, como diz a Declaração dos Direitos Humanos. “Contemplar o mundo não nos faz mais sábios”, escreveu Saramago. Pensar nos outros e pormo-nos no seu lugar, sim. Por isso procuramos estar fecundamente desassossegados.