Não é um diário: são apontamentos, frases, pequenos textos, escritos ao longo dos dias e das noites. Tentativa de fixar o tempo. Um tempo. A intimidade?
Braga, 11 de setembro de 2011
M. vê um desafio de futebol na televisão, enquanto eu escrevo.Hoje, fomos à Ponte de Misarela. Nunca pensei que conseguisse andar tanto, por caminhos de cabras. Foi uma espécie de retorno à infância através de sons, cheiros e sombras.
:Gafanhotos, funcho, rosmaninho, um louva-a-deus por vezes; na berma das veredas, abrunheiros bravos, de frutos roxos esmaecidos de pó. O de vez em quando de um pássaro desprendia-se e voava perto. Em baixo, a água entre rochas, recortes no azul seco e cinzento da pedra; a luz estagnava, no rio morto: é assim a máquina do verão quando não é interrompida: palavra a palavra ou coisa a coisa, separa com o sol; espera-nos a ponte, a que havemos de chegar, no fundo de um barranco: a lápide assinala uma invasão, o número de soldados comidos por varejeiras, o nome dos heróis, linha a linha perdidos, amontoados; depois voltaremos para trás, rompendo a surdina dos insetos; só as cigarras de súbito dizimam como as mãos nas orelhas. Desceste para o rio, e chamavas; deitados numa laje, pés na água, dois rapazes nus; a nudez brutal de qualquer resto; lascas de quartzo, espinhos de silvas, o vermelho poeirento da terra que prende a luz, o silêncio é essa prisão, às vezes tem a nitidez da distância, e diz como é longe, como tudo é longe, como estamos, como podemos; neste despovoamento, só a respiração, ou um zumbido que se aproxima. Somos entre coisas. Nem um nome.
Setúbal, 20 de setembro de 2011
Não vinha a Setúbal há muitos anos. A cidade cresceu até se tornar sufocante. É um espaço de acumulação.
:Entre prédios velhos, o empedrado brilha; nas poças de água apodrecem tripas de peixe; o céu é um recorte de telhas. Volto. Mas as vozes murmuram no seu labirinto, indistintas, e com elas regressa a distância; quando murmuram todas as vozes são as mesmas, dizem unicamente uma proximidade que não se consegue. Volto. Ao meio de um largo, com três araucárias e um muro de betão que o atravessa, numa diagonal cinzenta, alguns metros de sombra, onde uma noite sobrepõe-se a outra, os pés calcam a noite, esta, que range, de areia pisada. Volto. Todos os mortos me abandonaram. E atrás de mim ficou um descampado. Os restaurantes vazios, as toalhas brancas, o brilho um pouco turvo dos copos; corredores vão de porta a porta, do largo vazio à rua vazia, nós comemos sentados no meio de mesas postas para ninguém, um criado olha-nos encostado ao balcão. Volto. Tu acompanhas-me, com a deliberação de um abandono. O tempo afasta-nos sempre, o tempo nunca aproxima, o tempo revela como se perde. Volto. Mas este retorno apagou o lugar. Ou pior, dizimou-o, os teus passos dizimaram-no como um estrangeiro dizima a intimidade de uma casa. Volto. Sem o compromisso da morte, qualquer regresso é um abandono.
St. Poelten, 27 de setembro de 2011
Cheguei, tão cansado. Mas ainda fui ao jardim. Debaixo da ameixoeira, a erva está cheia de ameixas podres. As vespas zumbem por todo o lado.
:na casa habita uma outra estranheza. Não a das paredes limpas da tua morte, onde eu ainda procurava, mas a de alguém que nela passou como um ladrão.
:vens ao meu sono, ao meu sonho, ao meu dia,estás em todas as palavrasmesmo nas que não te dizem,escondido na morte como um salteador:relembro o cemitério, em St. Michael, junto ao Danúbio.
:retângulos de urze, um muro de pedra onde nos sentávamos a ver o rio, às vezes subias a torre, e eu ouvia cá fora o eco dos teus passos nos degraus, por fim aparecias lá no alto, a rir o meu nome
:faltava muito pouco.
St. Poelten, 4 de outubro de 2011
Desci à cave: há lesmas nas paredes, folhas secas presas em velhas teias de aranha. Mirraram cinco maçãs na prateleira. O cheiro de um rato morto. Insinua. Invade. Veios de humidade. O bolor estria as paredes, mostra a algidez do branco. A tinta fresca. A metamorfose do cheiro. Só as lesmas, no seu movimento vagaroso, na sua quase paragem, deslocam um pouco de brilho. De onde vem esta luz? Entreaberta, a pequena janela deixa entrar toda a morte do jardim, na grande fossa sética.
St. Poelten, 13 de dezembro de 2011
Hoje, fomos ao Ochsenkeller, em Kuffern. A primeira neve não chega a cobrir o terreiro. Os corvos saltitam e procuram nesse branco sujo. Quando entramos, os velhos cantam à volta de uma mesa, bengalas encostadas à parede, enquanto batem com os pés no chão. Horst Wessel Lied. Um nojo. Esta é a intimidade das pátrias. Lembrei-me do jardineiro de Hoess, o carrasco de Auschwitz
:o som da água no açude. Entre dois vidoeiros, nadam os patos: é como se voltasses atrás. Não sabes porquê. Não percebes. Estás sempre a regressar, mas o sítio é o mesmo. A indústria da morte produz continuamente este recuo. Talvez houvesse vidoeiros, lá para onde ela te leva. É limpa, a indústria da morte. Limpa como um crisântemo, um só, no canteiro devastado pelas roseiras. É limpa como o desenho curvo das pétalas. Curvo, esse pequeno corpo mutável: lagarta? unha cortada rente? ou esquírola de osso? São muitas as máscara de um nome. O começo renasce de todo o esquecimento. E é contra ti que renasce. Sempre o mesmo. Annus mundi. Acompanha-o o som do açude. Ou a água ferida pelas asas dos patos. O crisântemo matinal. Por vezes, o plástico finge a sua flor: um subtil apodrecer? Habituaste-te aos canteiros de rosas, ao jardineiro que tem o silêncio na enxada, ao ruído dos exaustores, como um sopro de vento sobre a erva dura de geada. Amorosamente: eis o que pensa a mulher que olha da janela do primeiro andar. Amorosamente, o jardineiro semeia a sua própria morte.
(Ou poda os galhos secos das roseiras, limpa-as de pulgões, arranca-lhes as folhas que a geada crestou. E a cinza floresce.)
Tu vês. Nunca deixarás de ver.
:Um arrepio, o homem de joelhos, no canteiro revolvido. A terra invadiu-o, tornou-lhe os contornos imprecisos, transformou-o num borrão. Os joelhos calcam a terra, mas os pés, na sua progressão, revolvem-na de novo. É um arado, este homem, uma enxada. Semeia? Ou vai de roseira em roseira? De crisântemo em crisântemo? Ou arranca. Arranca quase tudo, até à solidão de uma única flor, a apodrecer no seu branco?
Na janela do primeiro andar, as mãos. Fecharam. Fecharam-na. Ficou uma parede lisa. Alguém faz tiro ao alvo: a corda de o som vai emaranhando.Replica. Como um vírus, esconde-se nas suas máscaras.
St. Poelten, 3 de janeiro de 2012
No comboio para Viena: à minha frente um rapaz tapa os olhos com as mãos e parece chorar. Ao lado dele, um velho segura um livro com a mão esquerda. E lê. Enquanto a mão direita afaga o joelho. Pressente-se uma dor.
:aos vinte anos, representamos a tragédia. Aos oitenta, somos a tragédia que representámos. Mas escondida sob uma indiferença aparente. A velhice realiza no corpo, de um modo quase anónimo, o que a imaginação construiu.
St. Poelten, 10 de janeiro de 2012
No hospital, o Dr. Mayr disse-me: o perigo é cair desamparado, como uma pedra, partir a cabeça e ter uma hemorragia, que será muito difícil de estancar por causa dos anticoagulantes. Mas há outros perigos. Já viu a morte de um futebolista, em campo? É assim. E sorriu.
:esta terra é o produto de milhões e milhões de mortos. É uma esfera de mortos, pesada de mortos, é sobre eles que vivemos. Escombros, guerras, epidemias. Todas as matanças os foram produzindo. Árvores derrubadas, ossos, excrementos. Respiramos mortos. Fogos, vulcões, cinzas. Tudo contribui para o crescimento desta necrópole. Pisamos mortos, o vento arrasta mortos, calcamos o grande esquecimento, as ruínas são a memória desse grande esquecimento, só as palavras fingem a imortalidade, num processo lento de transformação de pessoas em nomes vazios, Bach, Camões, Haendel, invólucros, só invólucros, que os vivos enchem com as suas mentiras. Todos os mortos são anónimos. E devoram.
Há neles a alucinação de uma fome insaciável. Como a das cabras, que não dá tréguas.:cada palavra que dizemos encerra um morto ou uma coisa morta.
St. Poelten, 15 de janeiro de 2012
depois de reler Tostoi: Natasha envelheceu, Pedro envelheceu, e o livro acaba, prolongá-lo até à morte de Pedro e de Natasha, até ao casamento dos seus filhos, até ao nascimento dos netos, e de súbito a cabeça de Tolstoi, desamparada, cai no caderno, o aparo da caneta espirra tinta, o tinteiro vira-se, e rios de azul enraízam essa cabeça no branco do papel, encobrem letras, palavras, frases, dão ao livro um fim inesperado, a dimensão de um gesto interrompido (toda a vida um único texto.)
(todos os dias)
será assim? tentar mais uma vez, mesmo sabendo quetentar mais uma veze não interromper a matança:dentro do caixão, o teu corpo desfeito.O padre murmuravamas eram nítidas as palavras,cada palavra que ele dizia acrescentava morte à tua morte, E tornava-a imensa. Insuportável.Um vazio que ia crescendo. Irradiante. Até alguém dizer: não. E tapar os ouvidos.
Lisboa, 31 de janeiro de 2012
o arame dos novos campos são palavras,desenham-se e cercam. Semeiam o anónimonuma piedade que se esgota no fim de cada frase.