No México diziam-me que Gabriel García Márquez era amor, uma espécie de graça divina concedida à sociedade aflita do país. Diziam-me assim, que era como água boa deitada sobre uma terra a arder. Gabo, nascido na Colômbia, viveu no México como alguém que escolhe com quem casar. Uma moça nova em Xalapa jurava que Gabo era noivo e amante de todos os mexicanos, homens e crianças incluídos. Uma obscenidade benigna. Lembrei-me dela assim que soube da sua morte. Penso sempre no amor e no que acontece ao amor quando alguém morre.
No grande jardim de Xalapa, a ver a vista sentados no muro, eu e a moça juntámo-nos para sempre por causa dos livros, por causa de Cem Anos de Solidão, por causa de Crónica de uma Morte Anunciada. Ela achava que ia ser professora em lugares pequenos, para ensinar os miúdos a acreditarem em aventuras. Eu ria-me. Os bons livros contam aventuras terríveis. Parece que se ensinam coisas terríveis aos miúdos. Deve ser preciso assustá-los um bocado para o mundo, porque o mundo vai fazer um esforço para os devorar.
Sempre soube que gostamos mais de quem lê o que lemos nós. Gostar muito do mesmo livro, ou do mesmo autor, é uma intimidade que, se não ocorrer por uma natureza favorável, talvez se construa apenas com muitos anos. Talvez, sublinho, mas não é nada certo. Eu respondi que o Gabriel García Márquez andava há muito a fazer casais perfeitos, porque é tão fácil gostar de alguém que goste dos seus livros e tão difícil não gostar dos seus livros. Só quem não leu pode estar ausente dessa forma de encontrar quem se ama.
Quem não lê García Márquez, de todo o modo, vive no passado, não está neste mundo. Está fechado numa dimensão que não passa dos anos 1960. Como andar num carro muito velho à manivela, ir à rua com roupas do bisavô, ter telhados de colmo, e outras coisas tornadas desabituais. Os livros de García Márquez abriram o mundo para outra fase. Levaram-nos a todos de viagem, mesmo os que não se aperceberam disso. Porque transformaram muito do que esperamos da literatura e muito do que esperamos do jornalismo. Depois dele, há uma atenção à pessoalidade do discurso, uma certa autoria assumida que propende para a honesta interferência do ponto de vista. Gosto que seja assim. Que os livros escolham modos de ver e de ser. Que sejam únicos, fantasia adentro. O que pode e o que não pode fica completamente abalado. A literatura pode tudo porque é efetivamente como se comportam as pessoas e as histórias todas do mundo. Deitam mão do que lhes aprouver.
A mim agrada-me a voracidade dos textos de García Márquez. Essa fome de tudo que, sem pompas, catapulta todas as coisas para o que se diz. É um discurso de arrastão. O enfoque está definido e o resto entra porque se toca no caminho, mas nunca deixamos de saber para onde seguimos. Há uma espécie de linha principal que se dá ao detalhe. Definido o alvo, a aproximação leva consigo o que quer que esteja junto, perto, implicado. É sempre um modo ávido de contar. Como contam as pessoas entusiasmadas, impressionadas, as que se esquecem de outros propósitos senão o gozo de partilhar o que aconteceu com alguém. Os livros de Gabriel García Márquez são como conversas de vizinhos. Essas intensas rodas de intimidade onde se descortina tudo, onde se sabe tudo, dito com ciência ou fantasia, como todas as verdades são feitas.
Por isso nos identificamos tanto. Porque nos conferem entrada nessa roda de vizinhança como se fôssemos chegados, admitidos onde estão os que verdadeiramente conhecem as personagens implicadas. Os livros de García Márquez fazem-nos sentir habitantes do mesmo prédio, da mesma rua.Fica muito explicado o lado cupido da literatura. Isso de criar entre duas pessoas, por vezes desconhecidas uma da outra, uma sensação de proximidade. Passar por um livro pode ser uma forma de cidadania. Passamos a ser gente daquele lugar e vizinhos uns dos outros. Os leitores habitam juntos nesse lugar imaginário. É fácil entender porque se podem identificar, depois, uns com os outros, apaixonar, encontrar amores e esses amores serem os mais sinceros e ajuizados. Até acho que, sem essa cidadania, nenhum amor se descobre por completo. Fica aquém das suas próprias capacidades. E deixar os afetos a meio é pior do que ter dos braços apenas metade, das pernas ou das mãos. Como ter metade do coração.
O Gabriel García Márquez foi viver para os livros. Vamos encontrá-lo em cada um, abundante, sempre. Entre nós. Vizinhos. Misturados, tão bem nos misturou, com a urgência de sempre. Porque o modo como nos contou o mundo é todo assim, como uma demasia, onde nos devolve um sentido de vida inesquecível.
Quando voltar a Xalapa, Carolina, façamos de conta que nada mudou. Estaremos suficientemente salvos a viver dentro do Cem Anos de Solidão, ou dentro da Crónica de uma Morte Anunciada. Seremos fieis para sempre. Perfeitamente escolhidos pelos livros, mais do que os escolhermos nós. A literatura melhor é essa, a que se nos impõe.Obrigado, senhor Gabriel.