A casa cheira a livros. Estão por todo o lado, nas estantes, em cima das mesas, ao lado do computador, nos corredores, na entrada. A casa está cheia de fotografias, dos filhos, dos netos, dos amores, dos amigos, dos afetos. A casa é cenário das mil e uma aventuras de uma avó de quatro netos que partilha com os leitores alguns dos seus ‘truques’. Mas sem receitas.
O Livro da Avó Alice é a mais recente obra de uma escritora que, como diz a própria, “anda nisto” há 32 anos. Rosa, minha irmã Rosa, o seu primeiro livro, seria o seu primeiro grande sucesso, logo premiado, seguir-se-iam Lote 12, 2.º Frente e Chocolate à Chuva. Alice Vieira, que também foi jornalista do Diário de Notícias, nunca mais parou de escrever. Com uma vasta bibliografia, traduzida e editada em diversos países, é presença constante em escolas de todo o país – tendo recentemente abrandado o ritmo por questões de saúde – e é uma das autoras portuguesas que mais livros vende. A Espada do Rei Afonso, Flor de Mel, Úrsula a Maior, Águas de Verão, Se Perguntarem por Mim Digam que Voei, O Casamento da Minha Mãe ou Meia Hora para Mudar a Minha Vida são apenas alguns dos seus títulos.
Alice nunca está parada muito tempo. Neste momento tem entre mãos um romance, quase pronto, passado no século XVI, em Lisboa. Depois pegará num livro dedicado aos mais novos sobre frases idiomáticas, a sair na Texto. Quando o acabar fará, para a Oficina do Livro, uma biografia da Enid Blyton. Em julho, sairá, nesta mesma editora, o 3° volume da coleção Contos Para Meninos Valentes. E até dezembro tem que entregar, para a D. Quixote, um romance para adultos. Deita-se tarde e levanta-se cedo. Trabalha “como uma louca”, mas encontra sempre tempo para ser avó.
JL/Educação: No livro A Razão dos Avós, Daniel Sampaio escreve que ser avô é apaixonar-se de novo. Concorda?
Alice Vieira: É talvez apaixonarmo-nos de uma maneira que já tínhamos esquecido. É olhar para uma criança muito pequenina, estar vigilante aos mínimos sinais, trazê-la ao colo – coisa que aos filhos crescidos já é difícil de fazer, embora achemos sempre que eles continuam a ser crianças. Claro que nos devemos apaixonar pelos netos, mas não devemos viver em função de ninguém nem fazer depender ninguém de nós. Isso é o ideal.
Mas devemos viver livres de afetos?
Claro que não. A vida deve ser carregada de afetos. Eu preciso muito dos meus afetos, dos meus muitos amigos, mas esses sentimentos – tal como o amor – não nos devem prender. Não se pertence a ninguém. Amo os meus netos de paixão, mas tenho a minha vida profissional e pessoal como já tinha na altura dos meus filhos.
Quem é a avó Alice?
É pouco pedagógico responder pela negativa, mas prefiro dizer o que não sou. Não sou uma avó muito tradicional, não sou capaz de estabelecer rituais de almoço de domingo… Até porque as nossas vidas são muito complicadas. Cada neto tem atividades diferentes e entre torneios de futebol e workshops de percussão é difícil conjugar horários. Sou uma avó bem-disposta e divertida que ri muito com eles e das mesmas coisas, como diz no prefácio a Adriana, a minha neta mais velha. Temos uma relação muito saudável, risonha e sendo assim consigo (evidentemente que esse ‘trabalho’ também é dos pais) que eles sejam miúdos interessados, muito a par do mundo.
De que maneira?
Se um chegar agora aqui é bem capaz de discutir o FMI, as eleições, o Sócrates e o Passos Coelho. São muito politizados. Um dos meus netos, o Diogo, nasceu num 25 de abril e nessa altura eles ainda estavam em Inglaterra. Assim que o Diogo entrou para a escola, o meu filho passou a ir explicar aos meninos ingleses o que tinha sido o 25 de Abril. Levava cravos e tudo. Gosto que sejam miúdos espertos e bem integrados. São muito ativos, mas não malcriados. Certa vez, numa das minhas muitas visitas a escolas, levei a Adriana comigo. Quando estávamos a sair diz-me a professora: “Ela é tão bem educada! Diz sempre obrigada e desculpe…” Acho que isso deveria ser o normal.
Sente mais a indisciplina?
Ando nisto há 32 anos e está muito pior. Claro que há sítios melhores do que outros, mas penso que também depende muito dos professores que estabelecem regras ou não. As coisas estão mesmo muito complicadas em termos de educação. Uma amiga professora contava-me que uma aluna atirou uma coisa para o chão. Ela perguntou-lhe se em casa fazia o mesmo. “Sim”, foi a resposta. Quando vou a uma escola onde as coisas estão ‘normais’, chego a casa toda contente. Eu sei que os professores têm uma vida complicada e que se vêm muitas vezes transformados em burocratas a preencher papelada. Mas o que é facto, é que encontro professores extraordinários e outros nem por isso.
OS NETOS NÃO SÃO OS FILHOS
Diz-se muitas vezes que os pais educam e os avós estragam…
Sou perfeitamente contra a ideia dos avós estragarem os netos. O que eu descrevo não é estragar. É outra maneira de brincar que só os avós podem ter. Os pais de hoje trabalham muito e não têm a mesma disponibilidade. Eu também não tenho muitos dias livres, mas quando estou com eles, é em exclusivo. Posso fazer o que os pais não podem. Posso desarrumar a sala toda e fingir que é uma praia. Eles podem-se mascarar – tenho um armário cheio de roupas, cabeleiras, unhas postiças que usam até à exaustão. Penso que nós, avós, devíamos estimular a criatividade dos nossos netos, mas não ao ponto de desrespeitar as regras dos pais. Se os pais não querem que eles vejam muita televisão, não veem; se não querem que comam fritos nem doces, não o farão. Nunca vou contra o que os pais querem. Comigo não se estragam, bem pelo contrário. Cá em casa são sempre muito bem educadinhos…
Aliás, como descreve no livro, há mesmo uma lista de regras a cumprir que os netos tiveram que assinar…
A ideia foi da minha filha [a jornalista e escritora Catarina da Fonseca]. Eles são quatro e era a primeira vez que vinham todos cá para casa. Mesmo que não deem trabalho (e não dão) são muitos e de idades diferentes. Há coisas que, se não estabelecemos logo à partida, passamos o tempo todo a dizer: “Não faças isto, não faças aquilo”. Por isso definimos aquelas regras que são cumpridas escrupulosamente de todas as vezes que cá ficam. É um contrato.
E uma forma de os responsabilizar.
Exatamente. Os miúdos precisam disso. Como precisam de sentir que colaboram. Põem a mesa, ajudam a fazer o jantar.
Escreve que sempre pensou ser mãe, mas não avó…
Sempre me lembro de querer ser mãe. Ainda não estava casada com o Mário [Castrim] e já tínhamos escolhido nomes para as crianças que íamos ter. Quando nasceu a Catarina quis logo ter outro porque se deixava de lavar fraldas, se descansava, já não tinha mais nenhum. Os netos nunca estiveram no meu horizonte, nem quando o meu filho casou. Claro que quando nasceu a minha primeira neta foi uma enorme alegria, assim como quando nasceram os outros. Mas o primeiro neto lembra o primeiro filho.
Como?
Em tudo. E o mais difícil para os avós é perceberem que os netos não são seus filhos.
(Ver versão completa no JL/Educação 1061, de 1 de junho)