Porventura o mais psicológico dos romances de Lídia Jorge, quase integralmente narrado pela voz de Solange de Matos, como se assistíssemos ao desenrolar da sua meninice nos campos chazeiros de Guaré, vivêssemos o trágico retorno familiar de Angola e a nova a existência rural em Sobradinho e partilhássemos a sua juventude, tanto na formação do grupo das quatro cantoras, em 1987, quanto na frequência da Universidade Nova, em Lisboa. Finalizando com a descrição da noite triunfal (“perfeita”) do reencontro das amigas e de João de Lucena, 21 anos depois, A Noite das Mulheres Cantoras inicia-se, porém, com um aviso, assinado com o nome da autora (que assim se destaca, de um modo evidente, da instância narrativa), sobre os limites da psicologia da personagem, reenviando para uma representação realista da história (“porque na história de um bando conta-se sempre a história de um povo”), desde sempre a casa estética natural da autora, após a sua representação fantástica no ano memorável de 1980, data da publicação de O Dia dos Prodígios.
Poderíamos repetir o que aqui escrevemos na passada quinzena sobre Teolinda Gersão, agora aplicado a Lídia Jorge (LJ). Sim, ler os romances de LJ é penetrar numa bolha estética dificilmente ultrapassável a partir da posição de fundo de um realismo coroado por um universo psicologista (só mudando de estilo literário, como A. Lobo Antunes, Maria Velho da Costa, Mário Cláudio, Nuno Júdice ou Gonçalo M. Tavares, se suplanta literariamente a autora); sim, a mestria de LJ na utilização da língua portuguesa é absolutamente ímpar, fruto de 30 anos de experiência literária; sim, LJ funde clássico e moderno, ou é tão modernista quanto classicista no uso do português; não, diferentemente de Teolinda, de textos compostos por curtos parágrafos iluminantes, LJ privilegia os longos parágrafos argumentativos, explicativos, expressão da necessidade de uma exploração dos meandros psicológicos das personagens; sim, ambas as autoras contrabalançam descrição com narração segundo um equilíbrio harmónico que apaixona o leitor.
Neste sentido, sobre um horizonte de realismo social e no interior de uma exploração psicológica, A Noite das Mulheres Cantoras é um romance exemplar tanto na representação das relações sociais entre as personagens quanto na vertente histórica. De facto, o romance retrata bem o frufru em torno da produção de um disco nos longes de 80 e a formação da banda das “mulheres cantoras”, minimizando a participação da narradora, então com 19 anos de idade, entrada no grupo de um modo improvisado, e a ascensão da “maestrina” Gisela sobre as restantes elementos do grupo. A personalidade de Gisela é maravilhosamente retratada, uma mulher de vontade, tão arrebatada quanto previdente, tão disciplinada quanto ousada, submetendo tudo (até a morte de Madalena Micaia) e todos (até o “pai”, Afonso) em função do objetivo maior da criação do grupo cantante. Diferentemente, Solange de Matos, narradora e personagem principal, é evidenciada como uma personalidade disponível para as surpresas da vida (“a vida é levada por dois carros e um deles não o conduzimos nós”), ansiosa por encontrar um caminho urbano de existência que lhe apague as dolorosas recordações de Angola e o tédio de vida rural em Sobradinho; porém, suficientemente sabedora do caminho geral que intenta traçar para não dar ouvidos ao ceticismo e ao pessimismo de Murilo Cardoso, estudante de sociologia para quem o mundo se encontra permanentemente à beira do abismo.
Em fundo, executado com mestria e concorde com a superfície do texto, indiciado como horizonte semântico de compreensão, coexiste omnipotentemente a história de Portugal dos últimos 30 anos – a queda do Império, em 1975, representado pelas manas Alcides e pelas recordações de Solange (o “aluno dileto” avisando o pai do iminente ataque contra os portugueses; a repulsa do pai em dar-lhe guarida), e o destino social dos “retornados”, sobreviventes do naufrágio do Império, uns resignando-se a uma vida pacata no interior, refazendo a vida com sucesso (como a família de Solange – das suas economias, será comprada o andar do prédio da Praça das Flores, onde termina o romance), outros serão incapazes de se levantar de novo (como Madalena Micaia, falecida três dias após o parto de um filho de pai desconhecido); a espantosa abertura mental europeia dos anos 80 através da descrição da vida de João Lucena e do otimismo americano dos seus amigos; a emergência de uma burguesia liberal que corta radicalmente com antigos costumes pudicos (a cena da piscina em Vila Franca de Xira), evidenciando uma moral hedonista, própria daquela década, a que Solange, educada por uma tradicional burguesia católica, tem dificuldade a habituar-se (os conselhos da mão e do pai ao telefone); a deriva existencial e psicadélica pós-Maio de 68 de Gisela, subvertendo os traços essenciais da sociedade capitalista no mais plutocrata bairro de Lisboa (Belém/Restelo).
Romance circular, ausente de mensagens moralistas e de sentimentos de artificiosos, inicializado e terminado na noite/madrugada triunfante de 2009, nem breve nem longo em extensão, combatendo a pomposidade da retórica fácil, narrando a história às avessas, mantendo mesmo assim o suspense no leitor, A Noite das Mulheres Cantoras para além dos seus esmeros estéticos, que o estatuem como um ótimo romance, será bastamente apreciado por todos os leitores na idade dos 40, 50 anos, que teriam, à época dos acontecimentos centrais, entre os 20 e os 30 anos. Neste caso preciso, A Noite das Mulheres Cantoras funciona como um poderoso aguilhão da memória pessoal, que certamente encantará os leitores.