Foi nas colectâneas de contos de Woody Allen, assim como nos seus filmes, que Isabel Ermida, 42 anos, encontrou o estímulo necessário para fazer do humor o tema central das suas investigações universitárias. E o que à partida poderia parecer uma tarefa impossível no meio académico, revelou-se não só viável como pertinente. “No âmbito dos Estudos Anglísticos, em que me movo, a tradição humorística é muito forte, pelo que difícil foi fazer a selecção dos autores a analisar”, adianta, ao JL, a prof.ª do Departamento de Estudos Ingleses da Universidade do Minho. “Por outro lado, a pesquisa académica tende a tornar-se penosa, exigindo cargas muito pesadas de tempo, dedicação e perseverança, o que nem sempre é fácil de contrabalançar ludicamente. Pareceu-me desde o início que lidar com o tema lato do humor, e dar no percurso algumas gargalhadas, seria uma resposta a essas dificuldades”. Até agora, como diz, não se arrependeu da escolha. O seu doutoramento versou sobre os mecanismos linguísticos do humor literário, depois de ter defendido uma tese de mestrado sobre A Ambiguidade Linguística em The comedy of Errors, de William Shakespeare. Experiência suficiente para garantir: “Não há boa literatura sem humor”
Jornal de Letras: Como podemos caracterizar o humor na Literatura? É uma relação próxima ou conflituosa?
Isabel Ermida: Só será conflituosa aos olhos do analista, que muitas vezes tem um preconceito contra a suposta “leveza” do humor e outro a favor da “seriedade” – leia-se “sisudez” – da literatura. No contexto anglo-saxónico, em que a chamada “airport literature” tende a existir sem complexos, a tradição humorística na literatura é mais enraizada. Mas não devemos tomar os dois fenómenos como interdependentes. Há humor na literatura canónica tal como o há na de massas. O que há também, sobretudo em Portugal, é o estigma que a canonização literária sempre imprimiu à ideia de facilitismo e, até, do dito prazer simples. Existe a noção de que a literatura deve ser difícil, ao passo que o riso é, por definição, fácil (a não sê-lo, não ocorre).
Então qual é a melhor forma de definir o humor literário?
Definir o humor é uma tarefa tão difícil que se diz que a própria tentativa é uma piada. Talvez devamos começar por distinguir “humor literário” (ou “humor na literatura”) de “literatura humorística”. O primeiro consiste em situações pontuais que, curiosamente, assumem contornos muito semelhantes aos das anedotas, nas quais se dá uma cisão entre dois sentidos opostos mas que se sobrepõem, estabelecendo uma incongruência. Esta cisão costuma ser imprevista e a sua expressão breve. Ora, no romance e no conto estes elementos estão presentes nos apartes humorísticos dos narradores e das personagens, funcionando como “condimentos” do edifício narrativo e ficcional. Já na “literatura humorística” o humor é, não um condimento, mas o “prato principal”, consistindo num “jogo” mais extenso, e sistemático, em que a dita incongruência de sentidos sobrepostos se constrói ao longo de todo o eixo narrativo, dela dependendo a economia geral da história. Em alguns casos, a estrutura humorística do enredo culmina nas páginas finais do livro numa espécie de punch line (típico também das anedotas), em que se dá uma reviravolta absurda ou surpreendente da ordem das coisas.
Como distingui o humor da ironia, do sarcasmo, do escárnio e da zombaria?
A ironia e o sarcasmo podem ser humorísticos ou não. O uso humorístico desses mecanismos é muito frequente na literatura, sendo comum a ambos a tal cisão de sentidos de que falei. No entanto, na ironia o que se diz é o contrário do que se pensa (por exemplo, dizermos de um preguiçoso que “se mata a trabalhar”), ao passo que no sarcasmo o que dizemos está no mesmo campo semântico do que pensamos, mas de uma forma velada, restringida ou, como dizem os ingleses, understated (do preguiçoso aqui dir-se-ia que “não acredita em matar-se a trabalhar”). O escárnio e a zombaria, por seu turno, são a expressão clara de uma motivação agressiva para a produção do humor, que é também equa0cionada com sentimentos de superioridade: daí a tradição circense dos anões e doutros deficientes, a exploração da gaguez para fins cómicos, ou ainda o simples riso perante aquele que tropeça numa casca de banana.
Em que casos, na literatura, se recorre mais frequentemente ao humor?
O humor percorre géneros variados e costuma, por regra, intrometer-se nos temas mais insuspeitos. Quando falamos de comédia, estamos obviamente a falar de uma situação literária em que o humor subjaz a todo o edifício dramático. Mas o humor também pode existir, pontualmente, na tragédia. Por vezes, até, são os acontecimentos mais trágicos que inspiram o humor, sendo o riso a maneira de escaparmos ao medo que eles nos provocam (afinal, rirmo-nos da morte é a conquista última). Isto explica o facto de, no dia seguinte ao 11 de Setembro, já circularem na Net piadas relativas aos ataques. Este mecanismo de escape e libertação também abrange os temas-tabu, cuja exploração viola as regras sociais de decoro, auto-controlo e compostura impostas desde a infância. Aqui se inserem as piadas sexuais, escatológicas e aquilo que em inglês se designa por sick jokes, que mais não são do que a transgressão das normas e o rasgar do colete-de-forças que a sociedade impõe ao indivíduo. O “politicamente incorrecto” no humor é justamente a expressão do ultrapassar desses limites.
“O riso é próprio do homem”
Muitas vezes, diz-se que o humor é eminentemente oral. Concorda?
Nem sempre o humor oral é mais fácil do que o escrito, uma vez que depende crucialmente do ritmo, da formulação exacta e, não esqueçamos, da ocasião! Dizer anedotas num funeral ou arriscar uma piada homofóbica numa reunião da ILGA não é muito promissor. Se é verdade que no humor oral a linguagem corporal ajuda muito quem a domina, ela pode também funcionar como um entrave aos menos dotados: quantas vezes uma piada não perde a graça quando contada por alguém “sem jeito”? Em contrapartida, no humor escrito a linguagem verbal basta-se a si própria, mas isso não é forçosamente um obstáculo ao sucesso: veja-se a popularidade imensa das anedotas on-line ou, já agora, das crónicas do Ricardo Araújo Pereira ou do José Diogo Quintela. No caso destes últimos, parte do truque reside no talento de imprimir um ritmo coloquial à escrita, combinando elementos constantes de surpresa que não deixam o ritmo cómico esmorecer.
Quais são para si os principais clássicos da literatura de humor?
No contexto anglófono, nomes como P.G.Wodehouse e Evelyn Waugh estão fortemente ligados à tradição humorística britânica de entre as guerras, do mesmo modo que David Lodge e Tom Sharpe o estão na actualidade. Um nome grande da literatura do outro lado do Atlântico, o de Philip Roth, é na minha opinião indissociável do humor – humor complexo, multiforme, híbrido, combinado com a típica angst judaica. Quem não leu o Complexo de Portnoy entre risos? E que dizer de The Breast, uma história surrealista de um seio gigante que ganha vida própria e arrasa tudo e todos à sua passagem? Seja como for, a galeria é vastíssima, como se pode comprovar pela extensão das colectâneas de autores humorísticos: o Oxford Book of Humorous Prose, por exemplo, reúne 238 autores ao longo de 5 séculos, de William Caxton a Sue Townsend, passando por Lewis Carroll, James Thurber e Kingsley Amis.
E no panorama nacional?
Salvo melhor opinião, os portugueses são mais tristonhos também no ofício literário. Exceptuando as cantigas trovadorescas de escárnio e mal-dizer, os autos satíricos de Gil Vicente e, mais tarde, os poemas ousados de Bocage, a literatura lusa não abunda em exemplos de humor assumido. É claro que Eça é senhor de uma finíssima ironia humorística, fazendo uma sátira de costumes que continua, de tão intemporal, a provocar o riso nos nossos dias. Mas o que temos sobretudo é ocorrências de humor na literatura, mais do que “literatura humorística” propriamente dita. Por exemplo, Mário de Carvalho escreve com indesmentível humor, e até em Lobo Antunes o cómico marca presença: umas três boas gargalhadas em quinhentas páginas não são um mau saldo. Mas de um modo geral não me parece que seja pelo humor que a literatura lusa se destaca. Apesar disso, há a registar duas grandes antologias de humor português: a primeira de 1969, ed. Afrodite, conhecida por “o tijolo” de tão espessa; a segunda de 2008, ed. Texto, cobrindo 51 nomes, embora nem todos literários.
A literatura de humor também pode ser grande literatura?
Sem dúvida. Os nomes acima mencionados, bem como muitos outros não referidos, sobretudo no universo anglo-americano, assim o provam. Arrisco-me até a defender que não há boa literatura sem humor – porque aquela versa sobre a natureza humana e esta se manifesta exemplarmente pelo riso. Atribui-se a Aristóteles a máxima “O riso é próprio do homem”, pelo que diria, sob pena de soar pomposa, que onde a vocação universalista da literatura melhor se plasma é nesta dimensão fundamental que distingue os humanos dos animais. Os preconceitos contra a literatura de humor, a que já me referi há pouco, são uma realidade, mas reitero que o são mais em países como o nosso, em que a literatura ainda tem um carácter elitista e está associada a uma ideia de erudição e cultura de conotações bastante sorumbáticas. Em Inglaterra, onde as pessoas lêem romances de bolso no metro londrino e nas filas das cantinas, não me parece que essa questão se coloque, pelo menos com a mesma premência.
Leia a entrevista com Ricardo Araújo Pereira e as respostas ao inquérito de Jacinto Lucas Pires, Manuel António Pina, Manuel Silva Ramos, Mário de Carvalho, Pepetela e Rui Zink na edição em papel do JL.