São muitos os que deitam mão a liberdades poéticas, valter hugo mãe é um caso de “liberdade gráfica”. E se aboliu as maiúsculas foi para acelerar a escrita. É o que diz o escritor, que agora publica o seu quarto romance, a máquina de fazer espanhóis, o primeiro na editora Objectiva
Há sempre dois momentos na paginação de um texto de valter hugo mãe. Primeiro, alguém repara que o nome está indevidamente escrito com maiúsculas e põe tudo em caixa baixa. Depois, alguém presume que está gralhado e repõe as caixas altas. É um busílis para gráficos e revisores. Mas o aparente desprezo do escritor, que agora regressa com um novo romance, a máquina de fazer espanhóis, pelas maiúsculas não tem nada de pessoal. É antes uma questão literária, de “limpeza formal do texto”. valter hugo mãe acha que as maiúsculas são uma “sinalética” que só atrapalha a leitura. “Simplificando, sintáctica e graficamente, chegamos a uma escrita mais próxima do modo como falamos”, justifica. “As pessoas não falam com maiúsculas”.
É a simplicidade que procura e está convicto de que usando apenas minúsculas não só o pode almejar, como “acelerar” a própria escrita. E “agilizando o texto” aproxima-o não só do ritmo da fala como do próprio pensamento. “A escrita convencional deita mão de tantos sinais que nos obriga a marcar uma distância permanente entre o que somos e o que o texto é”, acrescenta. “Um texto mais acelerado permite uma respiração mais natural ao leitor encurtando essa distância”.
valter Hugo mãe não é, de resto, o único a usar apenas minúsculas. Al Berto fê-lo em alguns poemas e foi através deles que tomou consciência dessa “liberdade gráfica”. Assumiu-a depois por causa de Ruy Belo: “Numa dada passagem, ele diz que num poema, nenhuma palavra deve levantar a cabeça acima das outras. Levei esta imagem à letra, também por uma espécie de democracia das palavras”. Em suma, uma questão de estilo que acaba por “dar coerência” e diferenciar a sua obra, quer na poesia, quer na ficção. Nem uma “graça” para dar nas vistas, nem um capricho ou uma bizarria passageira. “É uma convicção que tenho aprofundado, porque o meu estilo tem que ver com essa propensão para a aceleração, para os textos que correm com rapidez”, diz. Aí, pesa também a importância da pontuação: a mínima possível, de modo a não interferir com a velocidade do pensamento e da escrita. E jamais usa reticências. Abomina esses três pontinhos que considera o “excremento da pontuação”. “É uma menorização da capacidade de leitura e de compreensão. É o sinal gráfico mais insuportável, porque é um sinal de desrespeito pelo leitor, que trata como se fosse estúpido”.
O escritor não ignora os engulhos que a sua opção estilística causa aos revisores e não deixa de confessar uma certa frustração quando vê os seus textos citados com alguma maiúscula. Já em relação ao seu nome, pouco lhe importa. Aliás, no BI assina-o com as maiúsculas da praxe, como qualquer um. “Fora do mundo dos livros, sou um cidadão convencional e até aborrecido”, garante. E confessa que a sua caligrafia natural é curiosamente quase toda ela em maiúsculas. Os seus cadernos de notas são a prova real dessa letra grande.
A cada um dos seus livros corresponde um desses cadernos, onde vai anotando ideias, expressões, palavras, muito antes de se fechar a escrever os romances. Para isso, mune-se de um computador que não o irrite, o mesmo é dizer que não esteja sempre a assinalar erro nas minúsculas e a emendá-lo. A primeira precaução que toma é justamente formatar o computador: “O meu word não me sugere nada, não se pronuncia quando escrevo os nomes das pessoas, das cidades, dos meses em minúsculas. Preciso que me deixe em paz e cada vez mais de estar isolado para escrever”. Abastece-se no supermercado de um sortido de conservas de atum e de sardinha, de sopas de pacote e outros enlatados e tranca-se em casa, durante umas semanas. Felizmente, que é aquilo a que se chama de boa boca e melhor estômago e não enjoa tal ração de combate. Concentra-se assim na escrita, espalhando papéis à volta do computador e abre os seus “caderninhos” de escritor.
No caso de a máquina de fazer espanhóis, que agora publica, o caderno era daqueles da Vida Portuguesa, com uma série de objectos, um cavalo e uma pomba na capa. Foi-lhe oferecido por uma amiga e começou a passar para as suas páginas a “energia narrativa” deste novo romance, quando ainda estava a escrever o anterior, o apocalipse dos trabalhadores. A primeira expressão que nele escreveu foi o fascismo dos bons homens, que pensou para título, mas acabou por ser o nome de um capítulo. O título definitivo, a máquina de fazer espanhóis, impôs-se ao correr da narrativa. Foi buscá-lo, de resto, a um dos poemas do seu livro pornografia erudita, de 2007. “Achei que esse meu poema estava a intrometer-se no romance”, adianta. Não foi a primeira vez que aconteceu essa contaminação: “A minha poesia é cada vez mais narrativa e a prosa tem momentos profundamente líricos”. Há muito que queria escrever a história de um homem de 84 anos, a partir do momento em que a sua mulher morria. “Queria abordar essa temática da terceira idade e levar adiante a preocupação que já vinha dos outros livros que tem que ver com o valor da vida e a inevitabilidade da morte”, afirma.
Ainda estava a escrever a máquina de fazer espanhóis quando, num aeroporto, comprou um outro caderno de capas vermelhas, onde já começou a tomar notas para o próximo romance. Desta feita, será mais “excêntrico”. Já preencheu umas 40 páginas desse caderno, onde também vai rabiscando uns “bonecos”. Mas é outro o papel dos desenhos na sua criação. Servem-lhe para “meditar”. valter hugo mãe desenha como quem pensa e o que risca ajuda-o a “decidir e a não complicar”.
Esses “desenhos de pensar” são momentos entre os textos e as outras coisas da vida, outras vezes como quem não pensa em nada acabam por ser “ofício de desaparecer”. São desenhos “muito depurados”, em que se evidencia a “beleza limpa das coisas”.
É também limpa, mesmo imaculada, a relação do escritor com o papel. Não admite nem a uma dedada na brancura da folha: “Não consigo desenhar num papel com manchas, marcas ou dobras nas pontas. E tendencialmente procuro um desenho sem um traço de hesitação”. “É uma utopia, até porque não sou um artista plástico”. Não, mas também: valter hugo mãe é poeta, ficcionista, autor de livros infantis, de peças de teatro e de guiões de cinema, desenhador, letrista e também cantor. E não canta apenas no banho, canta sobre todos os discos, acompanha todas as vozes, mesmo que não saiba a letra de cor, mesmo que desconheça a língua. Às vezes canta mesmo as suas canções, as que escreve e canta para o seu Governo (nome da banda com quem já gravou um primeiro disco). Tudo em minúsculas, tudo em grande.