A minha canção favorita de David Bowie chama-se Five Years. É o tema de abertura do álbum The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, de 1972, que é, por sinal, o meu álbum favorito de David Bowie. Começa com o prolongamento do crepitar da agulha sobre o vinil (na versão digital começa simplesmente com silêncio). Do vazio vai crescendo uma batida simples, que irrompe gentilmente o silêncio. E finalmente um raspar de cordas e um acorde de piano, que antecipam a entrada da voz. A música, de construção aparentemente minimal, sobe em direção a um clímax. Aglomeram-se elementos, de forma progressiva e discreta, como na história da sopa de pedra, e a cadência da voz de Bowie, reforçada até pelo coro, ganha uma intensidade rodopiante, como o bater de asas da borboleta se transforma em furacão. E na parte final do tema, quando os violinos se apoderam do fundo, e o coro repete Five Years incessantemente, Bowie recria-se dramaticamente sobre o cenário estático, chegando ele próprio a um êxtase vocal que se confunde com a exaustão. É o que de mais intenso se pode fazer em música. Brilhante. Quer a melodia quer a sua interpretação.
Onde foi David Bowie buscar esta forma expressiva de fazer música? Talvez a Jacques Brel e à chanson française, talvez a Kurt Weil, talvez a Marte, planeta de onde secretamente escapou para dar à Terra qualidades alienígenas.
David Bowie, em todas as suas fases e personagens, foi tudo e o seu contrário. Reinventou-se e manipulou-se. Colou-se e descolou-se de ondas. Foi mainstream e vanguardista. Gentleman e astronauta.
É por isso que estranho quando ouço alguém dizer que adora David Bowie uniformemente, sem escolher uma fase nem um disco. Porque David Bowie foram vários. E gostar de todos eles indistintamente é quase tão absurdo como não gostar de nenhum.
Da mesmo forma, quem diz que não gosta de Bowie e ponto final, afirma genericamente que não gosta da música pop, e tão pouco de algumas aproximações ao jazz e à música contemporânea. É dizer que não gosta dos Beatles, nem de Syd Barrett, nem de Brian Eno.
Black Star, o seu disco-testamento, é um dos melhores da sua profícua carreira. Revela novamente a sua imperturbável capacidade regenerativa, desta vez em direção a um pop de vanguarda, próximo, por exemplo, dos últimos discos Scott Walker. Não leva, no entanto, o seu devaneio sonoro tão além como este último (ou como Lou Reed), porque em Bowie, mesmo no cúmulo de um devaneio experimental, instrumental ou jazzístico, respira sempre o sentido melódico do músico pop-rock. Sabe-se que ele tinha voltado a trocar impressões musicais com Brian Eno e tal nota-se neste disco. Um momento de liberdade e lucidez galática, com o intuito de aproximar os planetas do sistema soar. Devemos amar os marcianos como se fossem nossos irmãos.J