Por amor de um verso”, escreveu Rainer Maria Rilke em Os cadernos de Malte Laurids Brigge, “têm que se ver muitas cidades, homens e coisas, têm que se conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e que seguir o gesto com que as flores se abrem pela manhã. É preciso poder tornar a pensar em caminhos em regiões desconhecidas, encontros inesperados e despedidas que se viram vir de longe”.
Assim começa um trecho que é uma espécie de definição da inspiração, de como surge, de onde vem. Se Rilke aponta em primeiro lugar a viagem, logo percebemos que é insuficiente para que nasça um verso. Há também que pensar ou tornar a pensar “em dias de infância ainda não esclarecidos, nos pais que tivemos que magoar quando nos traziam uma alegria e nós não a compreendemos (era uma alegria para outro), em doenças de infância que começam de maneira tão estranha com tantas transformações profundas e graves, em dias passados em quartos calmos e recolhidos e em manhãs à beira-mar, no próprio mar, em mares, em noites de viagem que passaram sussurrando alto e voaram com todos os astros, — e ainda não é bastante poder pensar em tudo isto”.
Não me lembro quem disse que para escrever basta ter sido criança, ter tido uma infância — sentença que ouço repetidas vezes na boca de vários escritores —, com a qual Rilke não concorda, pelo contrário, garante não ser suficiente. E continua: “É preciso ter recordações de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual a outra, de gritos de mulher no parto e de parturientes leves, brancas e adormecidas que se fecham. Mas também é preciso ter estado ao pé de moribundos, ter ficado sentado ao pé de mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos que vinham por acessos”. Talvez o amor e a dor pudessem ser melhores candidatos, talvez pareçam mais capazes de nos inspirarem, ou talvez o somatório de todas estas experiências e recordações antes mencionadas possam ser o lugar de onde vêm os poemas, mas mais uma vez, com precisão rítmica, Rilke nega essa possibilidade, sempre por insuficiência:
“E também não é ainda bastante ter recordações”. O trecho chega então à sua conclusão: “É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter a grande paciência de esperar que elas regressem. Pois que as recordações mesmas ainda não são o que é preciso. Só quando elas se fazem sangue em nós, olhar e gesto, quando já não têm nome e já não se distinguem de nós mesmos, só então é que pode acontecer que, numa hora muito rara, do meio delas se erga a primeira palavra de um verso e saia delas”.
Esta última parte da passagem citada levou o filósofo Mark Rowlands a cunhar o termo “memórias rilkeanas”.
Somos feitos de experiências que já esquecemos, que constantemente esquecemos, do mesmo modo que somos feitos daquelas que recordamos — as tais que Rilke diz não serem suficientes por si mesmas —, sendo a inspiração fruto de tudo o que foi experimentado, com a condição de este “experimentado” ter sido entranhado e ter sido transformado em corpo e sangue e potência e ato (“sangue em nós, olhar e gesto, quando já não têm nome e já não se distinguem de nós mesmos”). Assim, quando toda a experiência, qualquer tipo de experiência, se encarna e se converte em natureza, na nossa, é nessas circunstâncias que as palavras podem emergir metamorfoseadas em qualquer coisa rara, como um poema.
A questão das memórias rilkeanas é também iluminadora no que respeita à identidade e é por esse motivo que a perda de memória, pelo menos uma parte dela, não implica uma erosão total da personalidade, pois como escreveu Ben Platts-Mills, precisamente sobre este assunto, “a identidade não é propriedade exclusiva da mente, ou do cérebro, ou de qualquer função destas. A identidade é uma propriedade de todo o corpo, e todo o corpo está implicado no modo como a personalidade e o indivíduo podem persistir face ao esquecimento contínuo”.
A memória rilkeana diz-nos que a identidade é um sistema complexo que não pode ser confinado a um órgão específico, mas à totalidade do indivíduo, sangue, olhar e gesto, porque as recordações (como funções ou manifestações da mente ou do cérebro) não são suficientes. É desse lugar total que nascem coisas raras. E, seguramente, versos. J
Por amor de um verso

A memória rilkeana diz-nos que a identidade é um sistema complexo que não pode ser confinado a um órgão específico, mas à totalidade do indivíduo, sangue, olhar e gesto, porque as recordações (como funções ou manifestações da mente ou do cérebro) não são suficientes