Então quando é que vai lá de novo aos treinos? A menina tem de voltar quanto antes, ainda tem lá a sua assinatura e o seguro dura-lhe até ao final do ano. Isto agora apertou outra vez mas já tenho muita gente lá no ginásio a treinar contra os sacos de boxe. Uns contra os outros é que ainda não dá, mas uma pessoa sempre se vai focando na técnica, para não perder o jeito.
A vida tem-lhe corrido bem? A sua filha, está boa? E a doença? Tudo estável? Olhe, eu tenho tido um ano miserável, devo confessar, já não basta tudo isto, e acabei de me separar, já viu isto? Foi mesmo antes da quarentena, ao menos isso, aquilo já não andava bem há muito tempo, mas agora até somos amigos, fui lá noutro dia arranjar-lhe o esquentador. Mas isso não foi o pior! Aí há uns tempos fui treinar com o Hamin e ele acertou-me em cheio no pescoço, até fiquei cego, fui parar ao hospital. Depois, quando recuperei, caí da bicicleta a caminho de casa, espatifei-me, fiz uma rotura no joelho, fiquei mais não sei quantas semanas sem ir ao ginásio! Mas o pior, ou o melhor, sabe o que foi? No dia em que voltei para casa do hospital, do joelho e não do olho, sabe quem me apareceu à porta? A Elisa! Eu nem queria acreditar! Não sei se alguma vez lhe contei da Elisa, contei? Não a via há mais de 25 anos! Bateu-me, assim, à porta, sem mais nem menos, para me dizer que o casamento dela estava a correr mal e que ainda não se tinha esquecido de mim! Disse-me que aquilo não andava bem com o marido e que estava a considerar divorciar-se!
Eu também não me esqueci dela, a verdade é essa, mas o que fazer agora, 25 anos depois, não é? Sim, eu tenho este ar de puto mas já tenho 45 anos bem feitos no corpinho, e bem viajados, já percorri o mundo, e agora, olhe, tenho o mundo inteiro no meu ringue de boxe, deve ser o ginásio com mais nacionalidades da Tornhoutsebaan1. Tudo gente de todo o lado, como a menina, tudo estrangeiros. Ainda ontem me entrou lá um coreano, pequenino, pequenino, e com uns olhos tristes, não imagina. Eu recebo muitos miúdos novos. Chegam aqui com histórias terríveis. Alguns, querem dar porrada, outros querem defender-se, têm histórias de maus tratos e até violações, coisas horríveis, mas eu digo-lhes: alto lá, que o boxe é a arte da concentração, não é lá essa coisa da vingança e do Rocky Stallone!
A menina já sabe disso, o boxe faz-vos bem, só não vos faz bem exatamente como vocês querem. Eu estou deveras convencido de que é melhor uma boa luta de boxe para a depressão do que esses tratamentos que vocês fazem… Viu ontem o ministro da Saúde a dizer que as depressões nos jovens adolescentes aumentaram para o dobro com a pandemia? Pudera, se eu fosse jovem e visse esta gentalha que não percebe nada da vida a prometer que isto vai voltar ao normal, eu também me deprimia. Os jovens estão deprimidos porque passaram por uma quarentena e já perceberam que isto poderia ser tudo diferente se os mais velhos assim o deixassem, em vez de estarem sempre a dizer: “Não podes beber, não podes fumar, não podes juntar-te, não podes apertar a mão, não podes sair com a tua namorada, não podes ir a concertos, não podes conversar num parque de estacionamento”, não podes nada, mas podes ir de autocarro ao molho para a fábrica trabalhar a recibos verdes para manter a economia a funcionar não sei para quem! Ou podes ir limpar as retretes dos senhores advogados! Daqui a nada ainda lhes dizem que não podem lutar pelo que acreditam, porque faz mal à saúde da comunidade!
Pensam que os miúdos são parvos, mas ora, a menina é jovem, e não sabe já muito bem o que quer? Pois claro que sabe, eu também sabia, quando conheci a Elisa, percebi logo que era o amor da minha vida e não tinha mais de 18 anos. Quer dizer, eu saber sabia, não tinha era bem as prioridades no sítio. Um dia não apareci no funeral do tio dela e nunca mais a vi, foi o fim. Ela hoje é uma mulher feita, menina, tirou um doutoramento, dá aulas na universidade, continua linda, continua a cheirar a mimosas, mas não tem filhos, e eu também não, mas tenho um milhão no banco! Ganhei-o a treinar campeões de boxe como o Hamin. Eu sempre disse que ia fazer isto, que chegava aos 40 e não tinha de trabalhar mais nem para mais ninguém, e assim o fiz, não preciso de mais nada na vida, mas também não vou ficar só em casa a olhar para as paredes, que eu não tenho feitio para isso.
Eu já disse à Elisa: tu larga o teu marido e vem, que eu caso-me contigo, mas eu acho que ela nunca o vai deixar, sabe? As pessoas não mudam, que eu sei, ela diz que ainda quer fazer aquelas coisas da terapia de casal e isso, tentar recompor as coisas, e para quê? Já se sabe que isso não adianta nada, isso não resulta, uma pessoa não muda, tem de aceitar como é. 25 anos com o mesmo senhor e ainda não se esqueceu de mim? Ora isso não diz muita coisa? Ela disse que ia pensar nisto tudo e que nos encontrávamos no dia 3 de dezembro. E eu espero, claro, espero o que for preciso. Que mais posso eu fazer? Eu já sei que vou ficar nisto estes meses todos e depois ela vai dizer-me que afinal não consegue deixar o marido, e eu vou partir-me todo outra vez. Tenho de ter cuidado. Eu conheço-me, e o coração é mesmo o meu órgão mais fraco. E os dentes, tenho de ir ao dentista antes de dezembro, devia pôr aqui uma coroa, parti um dente a comer um bife, já me tinha esquecido de lhe contar esta história.
Enfim, isto não está fácil para ninguém, mas digo-lhe, menina, eu largava tudo por ela, o ginásio, a casa, até o milhão! Bom, vai ter de ser assim, vou tomar umas vitaminas para aguentar estas semanas e vou treinar muito para não pensar muito nisto. Apareça! Está com bom aspeto mas a precisar de ficar em forma, já não tem idade para se desleixar.J
Esperar como um Rocky Balboa
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