A tradição biográfica de Sebastião José, futuro Pombal, começa logo em sua vida com os panfletos que no reino compuseram os seus adversários, e com os esboços laudatórios que correram a Europa em obras sobre Portugal que então eram copiosas. «Le cose del Portogallo», como lhes chamava o grande historiador italiano Franco Venturi na sua obra sobre o Settecento Riformatore, ocupavam as atenções europeias, desde o sismo de 1755 à execução dos Távoras e à expulsão dos jesuítas em 1759, e para além desses acontecimentos também, e o espanto que foi gerado pelas coisas do Portugal de Pombal perdurou muito para lá do seu tempo. Escreveram biografias de Pombal grandes escritores como Camilo Castelo‑Branco, num livro que dizia o próprio «não poder agradar a ninguém» e que no entanto se lê com muito gozo e não pouca desconfiança pelo ânimo sectário que lhe dá verve, e Agustina Bessa‑Luís, numa encomenda oficial para as comemorações do bicentenário da morte de Pombal, em 1982. Escreveram biografias de Pombal historiadores autodidatas mas muito competentes, como o emigrante e livreiro luso‑brasileiro Lúcio de Azevedo ou o diplomata britânico Marcus Cheke, enviado para posto em Lisboa e unido pelo casamento a uma velha família sefardita portuguesa. E, para vir até à nossa época, escreveu sobre Pombal o historiador norte‑americano Kenneth Maxwell, um dos grandes especialistas internacionais de história latino‑americana, brasileira e também portuguesa, que produziu uma nova e excelente biografia daquele a quem ele chamou de «Paradoxo do Iluminismo», elevando o nosso entendimento do pombalismo a um nível que finalmente pôde transcender os maniqueísmos do antipombalismo e do pró‑pombalismo de que regimes e movimentos políticos portugueses sucessivamente se reclamaram e foram tributários durante mais de duzentos anos.
E, no entanto, este livro de Pedro Sena‑Linoque o leitor tem entre mãos é a biografia de Pombal por que tanto esperávamos.
Trata‑se de um livro literariamente primoroso, como as biografias escritas por Camilo ou Agustina – mas mais profundo, pormenorizado e sobretudo intelectualmente honesto. É um livro historiograficamente impecável, mas sem se deixar tolher pelos temores das baias académicas que faz de tantos autores serem incapazes de dizer, em termos simples, simplesmente o que pensam. E é um livro que incorpora muito do atual debate teórico, como o faz Kenneth Maxwell, embora seja mais uma biografia no sentido tradicional do termo, factual e narrativo, na fluência do decurso de uma vida – e se leia enquanto tal.
Não é fácil navegar no grande mar da bibliografia sobre Pombal. Em mais de um quarto de século de percurso profissional e académico ligado aos estudos sobre Pombal, o século XVIII, e o iluminismo – embora, confessadamente, com muitos e largos desvios – desejei muitas vezes que houvesse uma biografia que fizesse o que este livro de Pedro Sena‑Lino faz: separar mito de realidade, e assumir francamente quando é impossível fazê‑lo; não ter medo de arriscar uma tese ou interpretação, explicando por que poderia ela falhar; deixar falar os documentos judiciosamente, mas não fingir que se pode ocultar a voz do autor. Esperei muitas vezes que houvesse uma obra que me saciasse a curiosidade sobre os períodos da vida de Sebastião José de Carvalho e Melo que eu conhecia pior, sobretudo o fascinante decénio diplomático do seu percurso, e este livro de Pedro Sena‑Lino mais do que cumpre com esse objetivo, cruzando magnificamente o contexto da alta política em Londres e Viena com os aspetos da vida quotidiana em ambas as capitais – as casas, os móveis, as dívidas e até as ruas enlameadas – a que um emissário diplomático português tinha de se sujeitar. Resume com perspicácia os anos mais bem conhecidos da trajetória política de Sebastião José, sucessivamente Conde de Oeiras e Marquês de Pombal, sem omitir nem hiperbolizar, numa atitude que vai para lá da equanimidade e que transcende o pró‑pombalismo e o antipombalismo. E encaixa tudo isto com desenvoltura na história do século XVIII, com um excelente domínio da literatura secundária e um invejável alcance de fontes e arquivos nacionais e estrangeiros, de forma que o leitor que vem por Pombal obtém mais do que aquilo que esperava sobre a Europa e os seus reinos impérios, continentais e ultramarinos, na época em que julgavam estar no seu apogeu, quando o seu declínio não vinha longe ao virar da esquina.
É, em resumo, um livro que recomendo sem reservas. Igualmente acessível e proveitoso a todos os tipos de leitores: aqueles que acham que sabem quase tudo, e quase nada, da vida e obra de Pombal.
Uma biografia do Marquês de Pombal
De Quase Nada a Quase Rei, a biografia do Marquês de Pombal, da autoria de Pedro Sena Lino, é tão rigoroso quando se pode ser, mas não deixa de arriscar uma hipótese ou afirmar uma convicção quando a história nos deixou um vazio. É o que defende Rui Tavares, no prefácio que aqui pré-publicamos
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