“Já era tempo de erguerem uma estátua ao Syd Vicious”, comentou o rapaz de cabelo verde espetado e a orelha forrada de piercings, e deixou uma garrafa de gin junto à base, em jeito de homenagem. A miúda vegan declarou, como quem faz um discurso à nação: “Depois das atrocidades que os animais sofreram às mãos dos humanos é de elementar justiça este monumento que imortaliza o porco”. O homem de fato exclamou: “Concordo que façam uma estátua em forma de nota, se o dinheiro é o Deus da sociedade capitalista não há nada como o assumir”. A mulher de negro: “Meu querido marido, sabia que um dia o mundo te iria dar valor”. Um a um todos dali saíam contentes, enaltecendo o trabalho da junta, da câmara, de quem quer que se tivesse lembrado de erguer tão absoluto monumento que se moldava aos olhos do mirador.
O projeto fora desenvolvido numa espécie de robot de cozinha para estátuas, com tecnologia de ponta que sintetizava e enfatizava um conjunto de recursos reconhecíveis, como os labirintos impossíveis de Escher, estereogramas e obras da op art, pranchas de Rochard, umas fotografias que circulavam online com um vestido a mudar de cor consoante os olhos que os viam e um livro infantil chamado Pato ou Coelho, em que o bico do pato se transformava nas orelhas do coelho e vice-versa. No fundo exagerava o princípio filosófico, vindo dos antigos, de que cada um perceciona a realidade à sua maneira, consoante as ferramentas que estão ao seu dispor. Por outras palavras, a realidade é a ficção em que cada um mais acredita. E há que tirar partido disso.
O homem anafado disse: “Finalmente, dedicaram uma estátua ao cozido à portuguesa, que devia ser elevado a património da humanidade… só é pena que não se possa comer”. A manequim deslumbrante: “Não costumam erguer estátuas a vivos… mas eu mereço”. O esteta: “Que harmoniosas linhas com que se desenha, nunca permitindo que o significante se submeta ao significado”.
Apenas o Xavier não se conformava com tão absurda ideia. Passara anos defendendo a verdade e achava monstruoso uma estátua troca-tintas, lambe-botas, prostituta, disposta a reconfigurar-se consonante os olhos de quem a via. Numa atitude drástica, pela calada da noite, pegou num machado e, qual David para Moisés, desferiu um golpe certeiro no seu âmago. De súbito, os sistema desligou-se e Xavier deixou a nu a armação metálica, rodeada de fios elétricos e uns quanto chips. Então, sorriu, estava reposta a realidade. Só que à saída confrontou-se com a figura brutamontes do segurança. Contudo, para sua sorte, este parecia nem sequer dar pela sua presença. Fixava antes a estátua e dizia: “Nem queria acreditar que fizeram mesmo uma estátua ao Bruno Sammartino, não é para menos, trata-se do maior lutador de wrestling de todos os tempos”.
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