Em 1434, o pintor Jan van Eyck que foi testemunha do matrimónio dos Arnolfini, pintou um retrato do casal. Além de ser uma testemunha como qualquer outra no casamento, acrescentou uma imagem que haveria de imortalizar o momento. Mas van Eyck foi mais longe, pois decidiu pintar-se a si mesmo, de forma subtil, no espelho convexo, que está minuciosamente representado no centro do quadro. O criador da obra deixou de ser apenas uma figura autoral para também ser percebido na sua forma física, isto é, o criador é visível na obra.
Há algo de circular – e não é apenas a forma do espelho – nesta ideia: ser testemunha e testemunhado, ser criador e criatura (à sua imagem e semelhança). Cervantes, sem recurso ao espelho, pelo menos um espelho físico, haveria de fazer com que Quixote e Sancho Pança fossem ao mesmo tempo espectadores e protagonistas das suas próprias aventuras, fazendo com que a certa altura da história encontrem um livro do qual são as personagens principais. O livro dentro do livro é uma forma metafórica do espelho.
É também interessante notar o lugar que ocupa van Eyck no retrato dos Arnolfini, que é central, como se desse ponto tivesse emanado a obra (o que de alguma forma é correto afirmar). A sua inclusão nesse lugar, apesar da centralidade, mantém-se subtil e só uma análise cuidada da pintura permitirá perceber o seu reflexo (talvez para afastar o pecado da soberba). Esta aparição do autor, que confere simultaneamente exposição e dissimulação, poderia ter uma explicação teológica: Deus, enquanto criador, ainda que o seu papel seja central, não é evidente ou imediatamente aparente, e o crente poderá apenas concluir que existindo uma obra, existe um criador (que é precisamente o que acontece quando vemos uma obra de arte: sabemos existir um artista. Esta é uma conclusão análoga à do argumento do relojoeiro de William Paley), mas a inclusão de um reflexo, ainda que subtil do criador, acrescenta algo ao pobre argumento teológico do relojoeiro. Diz que o criador existe na sua obra, um pouco como Deus se teria feito Homem para existir na História.
Durante a II Guerra Mundial, os meus avós esconderam em sua casa um pintor e escultor judeu que fugia do nazismo. Enquanto esteve escondido, em 1940, esse artista, Ivan Sors, pintou dois quadros, um retrato da minha avó e uma crucifixão. Sempre me foi difícil perceber por que motivo teria Sors pintado um tema fundamental do cristianismo e um dos mais difíceis de aceitar para as outras religiões abraâmicas. Mais tarde, soube que a cena da crucifixão era na realidade a representação de um monumento situado perto de Bratislava. Sors não pintou Cristo na cruz, pintou uma das suas recordações, um dos lugares eslovacos mais importantes da sua vida. O quadro reflete as suas memórias e não qualquer sentimento religioso.
Refiro estes dois casos porque em ambos encontramos o autor, não apenas no modo como pinta, mas de uma outra forma mais profunda, em que os temas representados são na verdade contextos para autorretratos subtis, que escapam ao fruidor desatento. De facto, os exemplos anteriores podem ser resumidos num texto de Caderno H, de Mário Quintana, titulado “A imagem e os espelhos”:
“Jamais deves buscar a coisa em si, a qual depende tão somente dos espelhos./ A coisa em si, nunca: a coisa em ti./ Um pintor, por exemplo, não pinta uma árvore: ele pinta-se uma árvore./ E um grande poeta — espécie de rei Midas à sua maneira —, um grande poeta, bem que ele poderia dizer:/ Tudo o que eu toco se transforma em mim.”
Ou, segundo a definição de Bacon, a pintura é “o padrão do nosso próprio sistema nervoso projetado numa tela”.
A necessidade de gravar certos eventos, entidades e objetos, seja através da escrita, do som ou da imagem, estende-se aos autores, que, quando não são o tema central, se infiltram nas obras, como Hitchcock nos seus filmes, como um deus passeando na sua criação.J