Continuamos sem saber como iremos sair do choque histórico que está a ser infligido pela pandemia COVID-19. Não sabem as famílias, não sabem as nações, nem a própria multidão assimétrica e desorganizada de grandes atores institucionais e empresariais que formam o atual sistema internacional, há muito tempo mergulhado numa entropia caótica. Contudo, só os mal-intencionados ou os profundamente ignorantes podem alegar que esta pandemia veio sem aviso prévio. Bem pelo contrário, ela faz parte de uma espécie de guião catastrófico que tem vindo a ser concretizado há décadas, e que tem sido antecipado por milhares de cientistas – que até agora têm desempenhado o papel de Cassandras – nos mais diversos domínios da crise global do ambiente, onde se incluem fenómenos de rutura acelerada como a extinção da biodiversidade e as alterações climáticas, agora já em fase emergencial.
Causas próximas e estruturais da Pandemia
Ao longo das últimas décadas, a disseminação das doenças, quer as conhecidas quer as novas, tem tido raiz principal ou nas alterações climáticas (como é o caso da migração para Norte de doenças transportadas por vetores, ou as altamente prováveis pandemias do futuro, resultantes da “reanimação” de vírus e bactérias durante milhares de anos congelados e neutralizados na criosfera), ou na extinção maciça de espécies, que provoca fenómenos de zoonose, o “salto” de vírus de animais para os humanos (atualmente, 75% das novas doenças têm esta origem). A combinação das duas causas não pode ser excluída. No caso da presente pandemia de CODIV-19 trata-se claramente de uma consequência da segunda causa: a destruição dos habitats e a captura ou reprodução em cativeiro de espécies em vias de extinção, comercializadas vivas, em mercados (wet markets) asiáticos (sobretudo na China) e africanos. A epidemia SARS (2003) teve a mesma origem. Avisos foram feitos. Por virologistas, por Bill Gates, por Obama. Mas não foram escutados.
Como é que demorámos tanto tempo a reagir, e de forma tão descoordenada? Como foi possível “o salve-se quem puder” europeu, e as oscilações na resposta de tantos países, que estão a aumentar o número de vítimas e a colocar, mesmo Estados com razoáveis sistema de saúde, à beira, ou mesmo para além, da sua exaustão, como já ocorreu em Itália e Espanha? Para que a nossa resposta possa ser útil, temos de ir ao fundo da questão. A verdade é que o atual sistema económico-político não está organizado em função da defesa das sociedades – seja a sua saúde, seja a sustentabilidade do ambiente de que dependemos – mas sim, em função da manutenção em funcionamento de uma máquina económica que tudo sacrifica à demanda distópica da reprodução desmedida, potencialmente infinita, do capital.
Foi o Papa Francisco quem melhor sintetizou a presente situação, ao afirmar que o modelo de atividade produtiva no mundo está subordinado a uma “economia que mata”. Todos os indicadores da sustentabilidade global do Sistema-Terra têm-se agravado num ritmo sem precedente, colocando até em causa alguns sucesso na melhoria da qualidade ambiental regional na maioria dos países ditos desenvolvidos. O persistente fracasso da diplomacia ambiental e climática, antecipa que Portugal se deve preparar para enfrentar os impactos da emergência climática, provavelmente contando apenas com as suas forças. Mesmo que, desejavelmente, a situação internacional se inverta num sentido positivo, Portugal deve preparar-se, desde já, para as profundas, perigosas e destrutivas consequências da mudança climática sobre a saúde pública, a biodiversidade, o litoral, o regime hidrológico e as reservas hídricas, a produtividade dos solos, o aumento de calamidades causadas pelos eventos extremos (como ocorreu no Verão de 2017), etc., só para mencionar as que aparecem como mais evidentes pela sua inevitabilidade.
Com ou sem esta pandemia, a humanidade caminha para novos e terríveis impactos diretos da crise ambiental e climática. A saída da catástrofe do CODIV-19 deve capacitar-nos – através de um vasto consenso nacional e se possível europeu – para estarmos prontos para as próximas crises que nos colocarão à prova nas próximas décadas e gerações.
Linhas-de-Força para uma Estratégia Nacional de Sustentabilidade e Resiliência
Mudar, sublinho-o, significa reconhecer o fracasso do modelo da total rendição da sociedade e das respetivas políticas públicas aos interesses das grandes multinacionais que desenharam, movidas apenas pela maximização dos seus lucros, a atual desordem internacional, onde países desenvolvidos nem sequer máscaras de proteção têm para os seus médicos e enfermeiros. Países que se atropelam, abertamente e sem vergonha, para serem os primeiros a receber ventiladores importados da China, país que essa mesma sede irrestrita de lucro transformou na principal fábrica do mundo, em detrimento dos mais elementares critérios de segurança pública e nacional.
Eis os princípios que, na minha perspetiva, devem informar uma estratégica nacional, que deseja e reclama uma ação coordenada da União Europeia, mas não deve ficar à espera dela, pois, na verdade, tal pode nunca vir a acontecer.
- A saída da pandemia e dos sofrimentos sociais e económicos que daí decorrerão só será possível com a mobilização da sociedade portuguesa, liderada pelo Estado e as políticas públicas. O mercado e as empresas terão um papel importante, mas subordinado. Os parceiros sociais deverão, certamente, contribuir para o delinear das medidas, mas só o Estado e os seus poderes legítimos estão autorizados a vincular o país a um rumo estratégico
- A “economia verde” não pode ser encarada como um sector paralelo e concorrente ao da economia, dita “normal”. Pelo contrário, a grande oportunidade deste momento de rutura é a de operar uma verdadeira “destruição criadora” ecologicamente orientada, para usar um conceito de 1942 do economista Joseph Schumpeter. Trata-se de desenhar e conduzir uma viragem inovadora absolutamente sincronizada e articulada com os critérios de uma transição para uma economia sustentável, fiel ao primado da justiça social e da conservação e recuperação da vertente ambiental, incluindo a produtividade dos serviços ecológicos vitais prestados pelos ecossistemas naturais.
- O Estado português está a mobilizar recursos financeiros sem paralelo para enfrentar esta catástrofe. Isso implicará um aumento gigantesco da dívida pública, em condições de grande incerteza quanto ao futuro da UE e das regras absurdas que têm amarrado os Estados da zona euro a uma austeridade perpétua, que se traduziu no enfraquecimento, por exemplo, dos serviços públicos de saúde. É imperativo mobilizar recursos financeiros europeus, tanto através do ainda não explorado financiamento de emergência direto do BCE, como também da emissão de “eurobonds”, que é indispensável para a sobrevivência da UE. É imperioso, também, que as garantias bancárias públicas dadas à banca para financiamento às empresas, sejam acompanhadas por critérios de sustentabilidade estrita na seleção desses apoios. O que significa, duplamente, proteção dos postos de trabalho e respeito de regras ambientais cada vez mais exigentes.
- O Estado não deve nem pode apoiar incondicionalmente empresas com uma gigantesca pegada ecológica, e que agora querem ser salvas a todo o custo pelo dinheiro público. Esta crise contém uma oportunidade para o Estado português recuperar o pleno controlo sobre sectores importantes da economia, que foram alienados na última década. A recuperação plena da TAP e da ANA, permitirá um redimensionar realista da componente aérea de uma política de mobilidade e transportes, afastando em definitivo a construção de novas infraestruturas, como o anunciado aeroporto no Montijo. O transporte aéreo já atingiu o seu pico, em Portugal e no mundo, caso a humanidade queira evitar um processo descontrolado de alterações climáticas. Do mesmo modo, a chantagem do sector automóvel, com eventual exceção para os segmentos da mobilidade elétrica, deve ser enfrentada e recusada. O regime dos vistos gold, um disfarce para a lavagem de dinheiro com impacte especulativo no território, e o privilégio fiscal dos combustíveis fósseis, que só na Europa corresponde, anualmente, a quase duas vezes o orçamento da União Europeia (UE) deve ser de imediato cancelado, no que estiver em nosso poder.
- A prioridade deverá consistir em conceder o maior apoio possível, desejavelmente direto, ao rendimento dos assalariados e suas famílias (incluindo os trabalhadores “a recibos verdes”), bem como às micro-empresas e PME, durante o período agudo da pandemia. No período posterior, esse apoio a essas empresas deve ser voltado para todas as áreas que aumentem a capacidade do mercado interno em todos os domínios, da produção agrícola ao sector secundário, sempre na escrupulosa atenção aos critérios da produção sustentável. Portugal deve aumentar a capacidade de alimentar a sua população. Temos de estar preparados para a eventualidade de uma interrupção das cadeias de abastecimento no caso, infelizmente não improvável, de uma quebra no comércio intra-europeu em caso de colapso da zona euro. Nesse sentido, não só devem as leis de proteção dos solos agrícolas serem rigorosamente implementadas, como deverá ser lançada uma nova política de colonização interna, voltada para a diminuição drástica das monoculturas desordenadas de eucalipto e pinheiro bravo, responsáveis pela vergonhosa e repetida posição de Portugal como campeão europeu de incêndios florestais.
- Devido à procrastinação de uma estratégia de transição para a sustentabilidade, o esforço de Portugal, da Europa e do mundo será agora e doravante muito mais penoso e difícil. Mas, baixar os braços não é alternativa. O Estado deve reinventar-se, para cumprir o seu papel de líder do interesse comum. A reorganização das pastas no executivo devem ter em consideração a necessidade premente de aproximar a política pública de ambiente, das áreas da administração interna e da defesa nacional. As áreas protegidas podem e devem ser defendidas com a intervenção mais direta de unidades especiais das forças de segurança militares, como já ocorre com a GNR.
Urge também que as Forças Armadas assumam o desafio da crise ambiental e climática, seguindo o modelo espanhol de constituição de uma unidade polivalente de alta eficácia e prontidão, a Unidade Militar de Emergências. Mais do que isso, importa que as Forças Armadas integrem novas missões e novos equipamentos. Isso implicará reformar o Conceito Estratégico de Defesa Nacional (RCM 19/2013) e alterar a Lei de Programação Militar (Lei 2/2019, 17 de Junho). O parlamento deverá discutir, com seriedade, a necessidade de reintroduzir o Serviço Militar Obrigatório, tendo em vista a mobilização competente de recursos humanos para fazer face à multiplicação de riscos e eventos extremos. - Também as metas de reconstrução sustentável da economia e do tecido social devem orientar as políticas de educação, ensino superior e investigação científica. Isso implica, claramente, uma discriminação positiva dos financiamentos para projetos nas áreas da sustentabilidade. Também aí, Portugal deve desenvolver uma “economia do cuidado”, na feliz formulação do economista José Reis.
- A UE, em particular a sua coluna vertebral que é a zona euro, está a entrar numa encruzilhada que ditará ou a fragmentação do projeto europeu, que é totalmente contrária ao interesse nacional, ou a sua evolução para uma dimensão federal, que, embora sendo a única compatível com o interesse português e a luta planetária pela sustentabilidade, não depende apenas de nós. O país deve estar na linha da frente da luta pela salvação do projeto europeu numa refundação federal, mas deve preparar-se também para o pior cenário da sua fragmentação.J