Um dos grandes erros do presente tende sempre a ser o de se olhar para o futuro e esperar que ele se comporte como o passado. É um defeito comum de perspetiva: olhar para o horizonte e ignorar que ele muitas vezes tem um ponto cego que nos impede de ver o que verdadeiramente pode vir aí, e como isso pode ser de facto diferente do esperado. É que o futuro é, por definição, a chegada do novo. E embora a história por vezes se tenda a repetir, nunca o faz de maneira totalmente simétrica em relação ao passado. E é por isso que problemas antigos em contextos novos têm de exigir soluções diferentes, ousadas, inovadoras.
I – Medo, sofrimento e transformação social
Do ponto de vista da história da humanidade, nada de novo há numa pandemia. Mas para o indivíduo subitamente arrancado da sua experiência quotidiana pela irrupção no seu espaço mental de um medo que tudo invade, transformando o outro familiar no potencial hospedeiro de um suposto “inimigo invisível” (nunca a metáfora da guerra andou tão gasta como por estes dias), e o espaço físico circundante numa espécie de indistinta mancha que a qualquer momento o pode contaminar… tudo muda. E fá-lo tão depressa que num instante o instinto de sobrevivência (pessoal ou coletiva) se tende a sobrepor a tudo o resto e, com aparente facilidade, o excecional normaliza-se à medida que cidadãos e instituições democráticas parecem de bom grado abdicar preventivamente de direitos, liberdades e garantias em nome de um bem ulterior maior.
Que não haja dúvidas: face a uma ameaça com as características da Covid-19, tudo o que puder ser feito para estancar a sangria e proteger, tanto quanto possível, toda a vida humana naquilo que ela tem de insubstituível, deve ser feito. E isso implica um esforço hercúleo e decisões difíceis, quer a nível individual quer por parte das instituições públicas. Mas convirá talvez não esquecer que este período excecional traz consigo a potencialidade de mudanças radicais e profundas a muitos níveis.
Anulará por completo os resultados económicos dos últimos anos e inverterá a trajetória de acerto das contas públicas feita por países como Portugal, aumentando a dívida como consequência das medidas necessárias para salvar a economia e proteger o bem-estar social das pessoas; acelerará outros processos já antes em curso, como o da migração do trabalho para plataformas on-line e, a prazo, provavelmente também a automatização e a robotização, à medida que tal se for tornando mais rentável para empresas e administração pública. E não é despiciendo o risco, sobretudo em comunidades políticas já mais infetadas com esse outro vírus, o do populismo, da tentação de se passar da solução securitária à solução autoritária, enquanto a perceção geral da população for a de que tempos extraordinários justificam medidas extraordinárias e que, em face disso, liberdades e garantias são pequenos luxos de tempos de abastança dos quais mais vale a pena abdicar.
E é por isso que olhar para o pós-pandemia, isto é, para o momento a seguir ao da calamidade em termos de saúde pública – que agora concentra de forma esmagadora, e justificadamente, a nossa atenção – é tão importante, como o é também a deliberação coletiva sobre o que queremos, enquanto comunidade, que se siga, e o que podemos fazer, no âmbito da nossa deliberação democrática, para influenciar os processos políticos, económicos e sociais que daqui advirão. A este respeito, parece-me que o melhor ângulo de ataque a esta enorme e complexa questão tem de ser, por um lado, diferenciado na avaliação dos problemas e, por outro, englobante o suficiente para ser aplicado em múltiplas escalas, incluindo a escala transnacional.
Voltemos à analogia da guerra. Ela tem a sua razão de ser. Antropomorfizar o “inimigo” ajuda a deslocar a fronteira entre o “nós” e o “eles” para o limiar do inumano e a apelar à coesão e unidade de quem está do lado de cá, os humanos, numa luta que nos deve unir a todos contra a ameaça comum.
Por todo o lado, a heroica abnegação de médicos, enfermeiros e auxiliares por entre a falência dos sistemas de saúde face à enorme quantidade de casos da doença, e a perda de vidas que dela resulta, fazem com que, na prática, e em termos de saúde pública, o cenário que daqui resulta seja muito parecido com o de uma guerra – caos na organização social e enorme perda de vidas humanas – e com um sofrimento muito próprio, aquele que advém do necessário isolamento imposto aos doentes. Nos casos mais graves isso significa uma morte perante a impotência dos profissionais de saúde, e, portanto, duplamente cruel: para os doentes que se encontram privados da companhia dos seus próximos no momento derradeiro; e para os profissionais que, por falta de meios ou simples insuficiência da medicina atual para ir mais longe nestes casos, são confrontados com uma catadupa de vidas humanas perdidas apesar dos seus melhores esforços.
II – A assimetria da crise
Porém, a identificação da Covid-19 como “inimigo comum” não deve fazer-nos esquecer a forma como a crise afeta de modo diferenciado pessoas em situação diversa e, como é fácil de constatar, que as consequências em termos de sofrimento social serão mais gravosas para aqueles que já se encontravam em situação de vulnerabilidade. A crise tem certos aspetos que nos recordam a imagem marxista do “mundo virado ao contrário”. Há uma cruel ironia no facto de a maior parte dos verdadeiros heróis nesta situação serem pessoas cujas funções laborais são frequentemente desvalorizadas: não só os profissionais de saúde no contexto de um processo histórico de depauperação dos sistemas de saúde pública no quadro da crise do Estado social, como também os trabalhadores dos supermercados, as pessoas que asseguram as cadeias de abastecimento e tantos outros trabalhadores invisíveis aos olhos do grande público. A mesma ironia que faz com que alguns países pobres agora controlem os fluxos de circulação e fechem as fronteiras a pessoas de países mais ricos que outrora rejeitavam os migrantes económicos ou mesmo os requerentes de asilo.
Contudo, esta crise também inclui outra dimensão na qual, em termos da assimetria das consequências e da distribuição do sofrimento social, o mundo continua a ser o mesmo, apenas em versão muito pior. Na análise que faz do populismo, David Goodhart popularizou a distinção entre aquelas pessoas que efetivamente beneficiaram da globalização ao longo das últimas décadas, incluindo da possibilidade de mobilidade global que ela traz consigo (os anywheres, aqueles que podem literalmente ir a qualquer lado em qualquer momento) e aquelas que, fragilizadas por essas mesmas alterações económicas e sociais, vivem enraizadas “nalgum lado” (os somewheres), não veem os seus interesses representados na nova ordem global e, por isso, são mais vulneráveis à manipulação dos seus afetos pelo populismo de direita.
Nesta dimensão, importa perceber que a crise pode atingir todos, mas as suas consequências serão assimétricas. Sofrerão mais aqueles que mais desprotegidos já estavam, a começar pelos pobres e sem-abrigo que menos condições têm para um isolamento social preventivo, passando pelos trabalhadores precários cujos empregos desaparecerão em face da crise económica e, no limite, aquelas pessoas que, como as que se encontram em campos de refugiados, juntam à indeterminação quanto ao seu futuro uma carência de proteção quase total. Face a esta situação e à multidimensionalidade e complexidade do problema, não é descabido equacionar um cenário futuro dantesco no qual às mortes causadas pela pandemia se viria juntar uma quebra ainda mais acentuada da solidariedade social com o agravamento da crise económica (e sobretudo da pobreza e da desigualdade), eventualmente aproveitada pelo populismo de direita para, num quadro cada vez mais iliberal, instalar governos autoritários e exacerbar a gestão pelo medo. Contudo, e apesar da estreiteza do caminho, este não é um destino inevitável.
III – Para problemas globais, soluções transnacionais: por um novo pacto social europeu
Há muito se percebeu que grande parte dos problemas políticos e sociais da nossa geração (precariedade, migrações, crises económicas) são transnacionais e que, por isso, o Estado-nação tal como o conhecemos é, por si só, insuficiente (embora necessário) para os enfrentar sozinho. E é por isso que autores na linha de uma teoria social crítica, como Nancy Fraser ou Rainer Forst, têm clamado por uma teoria da justiça transnacional e de aplicação ampla, que possa fazer face aos reais desequilíbrios de poder, e dar voz aos que mais sofrem. Esta pandemia e a crise económico-social que se lhe seguirá tornam essa necessidade mais urgente. Por enquanto o epicentro da pandemia está na Europa mas caso esta se venha a espalhar, à escala a que está a acontecer na Europa, a países mais pobres e com sistemas de saúde mais frágeis, a catástrofe será ainda maior e a necessidade de solidariedade internacional mais premente.
Contudo, e mesmo no seio da União Europeia e da zona Euro, que é a escala transnacional que para nós é mais próxima e dentro da qual teremos de resolver grande parte dos nossos problemas, quase tudo ainda está por fazer. Foi notório o fracasso na gestão da crise das dívidas soberanas de 2010-2011, com a ênfase nas medidas austeritárias punitivas que dividiram povos europeus e praticamente abandonaram o sul da Europa à sua sorte. A seguir a essa crise, e sobretudo aquando das últimas eleições europeias, multiplicaram-se os apelos a um novo pacto social europeu como forma de contornar os perigos de um populismo de direita.
Pois bem, esse momento, aquele em que a Europa finalmente se confronta com a sua escolha existencial mais profunda, chegou. A crise ameaça tomar as proporções da Grande Depressão de 1929 e só uma resposta forte, conjunta, e apropriadamente social poderá fazer face ao que aí vem. Doravante, a ênfase não poderá ser o equilíbrio das contas públicas a todo o custo – mecanismos como o Tratado Orçamental terão de ser revistos ou revogados. Salvar vidas, quer através do reforço da capacidade dos sistemas de saúde, quer no combate à crise económica, exigirá muito investimento. O risco é o da desintegração, não só a do projeto europeu como o conhecemos, mas o da desintegração social propriamente dita, à medida que os problemas se agravem.
Os contornos deste novo pacto social tão propalado continuam por definir e terão de ser objeto de deliberação coletiva em modo acelerado. Poderão passar pela mutualização da dívida ou por perdões de dívida aos Estados mais necessitados, pela intervenção do Banco Central Europeu a um nível muito maior do que no passado, ou pela atribuição de um rendimento básico incondicional. Todas as hipóteses têm de estar em aberto, porque o antigo está a desaparecer e o novo ainda não viu a luz do dia. Caber-nos-á tentar fazer tudo o que está ao nosso alcance para que esse novo possa continuar a ser plural e vibrante, apesar do inevitável sofrimento.