Desde pelo menos o século XV, com Nicolau de Cusa (1401-1464), e do século XVI, com Giordano Bruno (1548-1600), que a ideia de existirem inumeráveis mundos habitados fez o seu caminho na cultura europeia. Mas um dos testemunhos mais antecipadores das viagens espaciais – de que ida da Apollo 11 à Lua em julho de 1969 foi o expoente máximo – aparece-nos num livro do mais longevo presidente da Academia de Ciências de Paris, Bernard de Fontenelle (1657-1757), Entretiens sur la Pluralité des Mondes (1686). Transcrevo e traduzo esta surpreendente passagem:
“(…) eu não quero jurar que um dia não possa existir intercâmbio entre a Lua e a Terra. Poderiam os americanos ter acreditado que [um tal intercâmbio] houvesse de existir entre a América e uma Europa, que eles nem sequer conheciam? É verdade que será preciso atravessar esse grande espaço de Ar e Céu que existe entre a Terra e a Lua; mas pareceriam esses grandes mares, aos americanos, mais próprios para serem atravessados? (…) A arte de voar acabou apenas de nascer [refere-se à tentativa de Besnier, em 1673], ela aperfeiçoa-se, e qualquer dia ir-se-á até à Lua.”
No século seguinte, Kant (1724-1804) foi um dos muitos pensadores que exprimiu uma semelhante esperança de que existiria vida inteligente no sistema solar, mesmo que não tivesse manifestado o entusiasmo tecnológico de Fontenelle pelas hipotéticas viagens espaciais. Através da sua obra de juventude, Teoria do Céu (1755), Kant ficou na história da astronomia por ter introduzido uma nova teoria sobre a formação do sistema solar (hoje conhecida como teoria Kant-Laplace) e pela sua interpretação certeira da natureza das nebulosas. Contudo, mesmo no auge da sua obra, na Crítica da Razão Pura (1781), nunca deixou de ter uma “fé firme” (starker Glaube) na existência de vida inteligente nalgum planeta do nosso sistema solar:
“Se fosse possível decidir a questão por qualquer experiência, podia bem apostar toda a minha fortuna em que há habitantes pelo menos em algum dos planetas que vemos. Por isso eu digo: não é mera opinião, mas uma fé firme (sobre cuja exatidão arriscaria muitos bens da vida), que há também habitantes de outros mundos.” (KrV, Ak. III, 534-5).
Sabemos hoje, através do extraordinário incremento da pesquisa científica dirigida para a busca de sinais exteriores de inteligência no universo observável, que a convicção reservada e cuidadosa do grande Kant era excessivamente otimista. Apostar demasiado sobre a existência de habitantes nos “planetas que vemos” seria, hoje, invertendo o sentido da “fé firme”, algo de inteiramente ruinoso.
Fui testemunha direta, através da RTP, da chegada dos astronautas da Apollo 11 à Lua. Era uma criança de 11 anos e o planeta onde habitava também estava muito mais vigoroso do que se encontra hoje. O meu envelhecimento pessoal de 50 anos foi profundamente mais benévolo e suave do que o envelhecimento acelerado da Terra. Em 21 de julho de 1969, a atmosfera do planeta azul indicava uma concentração de dióxido de carbono de 324 ppmv (apenas cerca de 40 partes mais do que a concentração prevalecente numa imensidão de milénios anteriores à Revolução Industrial). Hoje já estamos nas 415 ppmv. Entre o fracasso da Cimeira Climática de Copenhaga. em 2009, e 2019 aumentámos 22 ppmv… Mesmo que parássemos por aqui, já ninguém poderia impedir grandes transformações no ecossistema global, que vão tornar a vida humana e das outras espécies bem mais difícil nos próximos séculos. Em julho de 1969 éramos 3,6 mil milhões de almas. Em 2019, somos 7,7 mil milhões. O dobro da população de 1969 com mais quase 500 milhões! Imensa gente, num planeta onde a insegurança alimentar vai transformar-se num problema tão normal como as ondas de calor, as inundações súbitas e a subida do nível médio do mar.
O que aprendemos com a viagem à Lua e com os 60 anos de exploração espacial já decorridos? Que estamos sozinhos no Universo útil (aquele a que podemos aceder). Que as fantasias sobre vida extraterrestre, tanto das ficções de Hollywood, como dos grandes pensadores da Modernidade, não passam disso mesmo, fantasias. Contudo, se essas duas aprendizagens parecem as premissas de um silogismo, a verdade é que continuamos sem extrair a conclusão lógica e moralmente justa: temos de proteger a todo o custo a integridade ecológica da Terra, quanto mais não seja para salvarmos a própria pele!
Se deixarmos a Terra ser devastada, isso quebrará para sempre a crença no conceito de dignidade humana. Os que sobreviverem terão vergonha de pertencerem à espécie mais miserável que se poderia conceber. Aquela que, apesar de imbuída de uma centelha divina organizou sistematicamente a autodestruição deste maravilhoso mistério sem paralelo que é Terra. Terão a vergonha de pertencerem a uma lastimável linhagem de filhos do Céu que escolheram degradar-se para a condição de diabos de segunda categoria, transformando a Terra num inferno.