Por uma lamentável troca na paginação do nosso último n°, dedicado ao 25 de Abril, no lugar do texto de Onésimo Teotónio Almeida saiu, repetido, o de Jacinto Rego de Ameida. Do erro pedimos desculpa àquele do nosso prezado colaborador, e aos leitores, publicando agora o referido texto, ilustrando-o com as fotos escolhidas por dois nossos companheiros de trabalho – que, como diversas outras matérias, tiveram de ficar de fora da nossa edição de 16 de abril
O 25 de Abril foi um evento bíblico que, ao contrário do Éden, o paraíso terreal descrito no Génesis, temos provas de ter acontecido mesmo. Para mim, todavia, há uma importante semelhança com o caso bíblico: não fui testemunha. Estava longe (por sinal bem longe, a oito fusos horários, na Califórnia) e recebi tudo em narração com a ajuda de imagens televisivas sempre em diferido. Quando, dois meses depois, cheguei a Lisboa, já todos só me falavam do que eu havia perdido: algo inexplicável, inexpressável, irrepetível, intransmissível, inefável. Quer dizer: o 25 de Abril, a festa alargada, celebrada em crescendo e em sete dias com o seu apogeu em 1 de Maio, o sétimo dia, passara definitivamente à história, transformada em mito. No caso, um mito de génese (no sentido bíblico; ou, para contemporâneos nossos menos interessados no Antigo Testamento, no sentido do Piaget da psicologia genética, que não é sinónimo do de Richard Dawkins e dos neodarwinistas seus continuadores), o mito do surgir do homem novo, que nem seria apenas português. O mito dos humanos anteriores ao pecado de Adão, muito próximo do bom selvagem de Rousseau, recuperado por Marx e por ele transposto para o futuro, numa reinvenção terrena do paraíso terreal. Portugal virara o Éden do finalmente purificado homem moderno e ia agora anunciar e revelar ao resto do mundo como se vivia o socialismo original. Agarrou o slogan utópico do Maio parisiense de 68 – Sejamos realistas, peçamos o impossível! – e acreditou deveras nessa possibilidade.
A narrativa poética (outra semelhança com o Génesis) que fui recebendo desses sete dias, e que acredito tenha sido vivida em pleno por milhões de compatriotas, foi, mês após mês, ano após ano, década após década, ficando colada a um passado cada vez mais longínquo, mitificada a ponto de hoje estar envolta no manto diáfano de uma nova lusa saudade e, pelas gerações nascidas posteriormente, associada a um sentimento nostálgico da gente já grisalha e quase toda aposentada, em fase de desejado regresso a uma perdida idade de ouro da adolescência. E, no entanto, essas gerações nadas e crescidas já na liberdade, tomaram como dado adquirido as conquistas de Abril, não parecendo por isso sentir necessidade de lhe reconhecer essa dádiva. Mas é mesmo assim que as gerações enterram as precedentes.
Como de resto é natural tudo quanto ocorreu e que Freud explicaria tratar-se do triunfo do princípio da realidade sobre o do prazer, e os psicólogos conhecedores da natureza humana identificariam como um processo normal de amadurecimento coletivo pois, se os seres humanos precisam de sonhos para viver, a vida não é um sonho; há que viver desperto e saber distinguir entre mito e realidade.
Rousseau foi um poeta que Robespierre levou a sério e por isso deu no que deu; Marx, na British Library, não quis fazer caso do que lhe ensinavam os psicólogos ingleses e nem mesmo esse escocês Adam Smith, bem mais perto do claro-escuro, branco e negro da natureza humana do que ele, que nunca teve de se preocupar com o ganha-pão porque tinha sustento, em grande parte graças ao seu mecenas Engels.Nada disso justifica o pesadelo em que Abril se transformou para tantos portugueses. E não é de modo nenhum aconselhável dar corda à tendência atual de se caminhar para o extremo, o caos apocalíptico (para nos quedarmos ainda na alegoria bíblica inicial). Será bem melhor – mais realista – imaginarmo-nos na travessia de um deserto, todavia sempre sem perdermos de vista a Terra Prometida de uma sociedade melhor aonde nenhuma Tróika, Europa, Alemanha ou África Lusa nos levará ao colo.
Abril deve animar-nos, acalentar-nos o dia a dia, mas os pés no chão em movimento para diante são a única garantia de que não acabaremos assados na areia escaldante do deserto, mesmo à beira da fresca água do Atlântico que abraça o Retângulo e a sua extensão insular no meio dele.