Ando sobretudo à caça de satisfação para uma angústia constante que se prende a tudo, a ter e não ter, sentir que nunca nada está completo, que nunca tempo algum é suficiente, falta-me tempo, quero mais, e quero gente e quero corresponder, pertencer genuinamente a cada lugar e melhorar os lugares e melhorar tudo, e ser feliz no meio de tanta coisa, tanta coisa que nem entendo, não chego a conhecer, não sou sequer inteligente o bastante para as aventuras todas, e digo angústia porque fica no ar um lado mais existêncial e filosófico do que a constatação sempre tão violenta da tristeza, alguma tristeza e a vida faz-se de andar entre alguma tristeza e procurar saída.
Andei à caça de abelhas e pirilampos, cacei as galinhas que escapavam do galinheiro e o meu cágado, que escapou do seu recipiente tipo praia grande, e fugiu para as heras durante dois anos. Caramba, o bicho comeu heras durante dois anos e fui descobri-lo quando procurava uns ovos que a nossa pata grande chocava nos muros. Estava lento e mesmamente desinteressado em mim, posto na beirinha de um ramo como se a vida de um cágado fosse aquilo, longe dos meus afectos, longe das minhas saudades. Habituei-me, tragicamente, a pensar que os bichos eram capazes de sobreviver à minha ausência e à relação tão carinhosa que tinha com eles. E cacei as lagartixas a ver se me ferravam nos dedos porque os outros putos me diziam que elas não tinham dentes e faziam cócegas. Nunca apanhei uma lagartixa. Apanhei alguns louva-a-deus, que são os bichos de que mais tenho medo no mundo, porque saíam das tocas dos grilos naquele pacto com a transcendência, estranhos, verdes como as folhas e a rezarem para que algum santo nos arrancasse a cabeça. A criançada dizia que os louva-a-deus chamavam as cobras venenosas e que estas nos haviam de deixar verdes também, mortinhos da silva, de castigo por lhes mijarmos nas tocas. Mijávamos para que os grilos saíssem. Penso agora que todos os meus melhores grilos foram comprados nas feiras de Paços de Ferreira e, depois, de Vila do Conde. Os grilos mijados, por mim e pelo meu ameaçador bando de amigos, deviam ficar com as cordas vocais estragadas e nem tossiam ou, se tossiam, haviam de o fazer muito baixinho porque eu não ouvia. Era uma pena.
Mas nunca lhes fiz mal. Não arranquei asas, não arranquei patas, não afoguei gatos, nem pontapeei os cães. Pareciam-me assim, os animais, a meio caminho de serem gente, porque não conversavam mas faziam coisas lá das suas inteligências que me fascinavam e era o necessário para que os entendesse como uma série de professores de outras artimanhas, artimanhas todas tão impossíveis de imaginar sem eles. Em toda a minha vida, e que me lembre ou saiba, matei apenas uma mosca. É porque sou careca, e as moscas, pousando-me nos poucos cabelos despontando, desconcentram-me, porque parecem agulhinhas irrequietas, que cismam com o estar a aborrecer-me uma e outra vez. Ficam a zanzar-me a cabeça como se atraídas especificamente pela cabeça, e não sei se tem algo que ver com estar a ter boas ou más ideias. Seria, ao menos, decente que tendo uma boa ideia não me quisessem mais, essas moscas sempre tão escatológicas, se é que me entendem. Peguei num lenço, destes todos bonitinhos que agora os homens usam, e transformei-o numa arma mortal. Bem agarrado, assim como um chicote da Zara, serviu para revirar a mosca de pernas para o ar. Coitada. As moscas não pensam muito e são um bocado estúpidas. E aquela não seria excepção, pelo que nem deve ter percebido que raio de coisa foi aquela, a de estar viva e lampeira num segundo, e depois morta a subir aos céus no outro. Tenho dúvidas que as moscas, tão burrinhas, subam ao céu, mas uma criação divina à maneira havia de lhes dar plenos direitos. Que destituídas de tudo também não são, e sem grande intelecto, a verdade é que voam e nós, humanos, com tanta mania, assentamos os pés no chão e não há cá tretas de voarmos, por mais que fosse uma delícia.
E quando descobri os ovos que a nossa pata grande andava a chocar fiquei espantado por serem escuros. Eram quase pretos. O meu pai disse-me que a pata era branca mas que namorou com um pato preto. E eu fiquei à espera para saber de que côr haveriam de ser os patecos, se vinham para a mãe ou para o pai, mas eles, por desgraça, não nasceram. Tínhamos um cão que, à primeira distração nossa, se lambuzou com os ovos e eu achei que ficara louco e o meu irmão deu-lhe uma tareia e eu chorei pelos patecos, pela pata grande, que ficou desorientada, e pelo meu cão que não tinha percebido que aqueles ovos não eram de comida. Ficaram esborrachados no buraco do muro, e não havia maneira de os colar. Na altura, apareceram nas televisões aquelas colas de colar os cientistas ao tecto, e eu ainda pensei que aquilo bem colado enganaria direito os patecos e voltaria a colocá-los no caminho certo de nascer. Mas o meu irmão baixou os braços porque não tinha paciência para isso. Foi uma tristeza para a vida inteira. A falta de paciência também é desgraça que chegue. Eu queria ser mais paciente mas dá-me aquela angústia e preciso de bulir e não há nada a fazer. Sou um predador, eu sou um predador.
E depois os bichos iam-se embora de todas as maneiras. Diziam lá coisas nas suas línguas ainda indecifráveis e eu perdia-os por aí, no quintal, tantos bichos me fugiram no imenso quintal, e a mim só restava ficar cada vez mais convencido de que, afinal, o meu afecto por eles não os fazia ficar. Não havia modo de garantir que entendessem que, comigo, teriam um companheiro para a vida. E cresci a perceber que, sobretudo a maioria dos bichos que eu podia ter, morriam muito novos. Alguns duravam um verão, o que não dá nem para passar da paixão ao amor eterno. Por isso é que os bichos são só paixão. Põem-se sexualmente uns nos outros sem grandes complicações porque ficam logo apaixonados à primeira, não têm tempo a perder. Que pena que não tenham amores eternos, esses bichos caseiros, como podem ter os elefantes. Os elefantes chegam a gostar mesmo uns dos outros, fora da paixão, quero dizer. Como os pinguins. Eu depois queria um elefante, porque se um elefante se perdesse nas heras do nosso muro, nem que fosse dois anos, quando o encontrasse ali sentado na beira de um raminho, havia de se lembrar de mim e dar-me a pata e fazer um som de corneta com a sua tromba e tudo. Poderia, por isso, querer voltar a casa comigo, sem que eu o levasse à revelia, mas antes por pura e espontânea vontade. Um elefante lá em casa, porque tínhamos uma casa tão, mas tão grande, seria até um sinal de grande juízo, para que não ficassem tantos e tantos elefantes por aí ao relento sem terem quem cuide por eles.
Sou um predador assim destes, à caça de amigos por mais esquisitos que os amigos possam parecer, a mim já nada me parece esquisito, já cá vi cada coisa. Uma vez uma senhora tinha um buraco tremendo na parte de trás da cabeça porque levara com uma bala e a bala, se calhar mais esperta do que as outras, ao invés de a matar fez-lhe um penteado novo e eu achei que era lindo que uma bala fosse mais esperta do que as outras, e a mulher ria-se, e rimo-nos muito os dois juntos. Também já estive com um senhor que deixou de ver e que virou fotógrafo. Punha as mãos nas coisas e usava uns candeeiros de que se lembrava ainda bem. Fotografava só à noite para que fosse o mais parecido com o não ver e fazia a foto. Apreciávamos os candeeiros ténues no espaço negro e sentíamos que nunca tínhamos visto o mundo assim, e ele descrevia-o por palavras e estava certo e sorria com uma felicidade surpreendente. A mulher de um meu vizinho, um dia, quando este chegou mais uma vez a casa bêbado e preparado para a torturar, pregou-lhe com um tacho na testa e ele caiu para trás e achou que tinha chegado a um limite. Aquilo foi coisa de tanta consciência que ele deixou de beber e pediu perdão à mulher e agora riem-se os dois em passeio pelo jardim que há no meio dos nossos prédios.
Eu sou um predador disto, que é sempre o mesmo. O outro lado das coisas, sem o qual a incompletude se acentua. Se for poesia, então sou poeta. Não sei ser outra coisa ou ainda não me ensinaram. Afinal, ainda confesso que também matei um mosquito, comi-o. Estava a falar num exame oral na universidade e o mosquito entrou-me boca a dentro e eu engoli-o sem querer. O bicho quis suicidar-se assim, como se tentasse chegar-me perto do coração. Tinha de lembrar-me dele, mesmo assim à última, porque foi, na verdade, muito romântico.