Foram recentemente encenadas duas versões da peça Quarteto, de Heiner Müller (1929-1995), uma de Jorge Silva Melo e outra de Carlos Pimenta – cooperação entre o CCB e o Teatro Nacional São João. Trata-se da releitura de Müller do texto Ligações perigosas, de Choderlos de Laclos, sobre a relação amorosa do visconde Valmont e a marquesa Merteuil, a ação decorre em 1782, por diversas vezes levado ao cinema, nomeadamente com o Valmont interpretado por John Malkovich.
Müller afirmou que leu o texto original “só na diagonal”, mas Quarteto (peça ‘banida’ na República Democrática Alemã – RDA — por “pornográfica”) é considerada, nomeadamente pelo encenador francês Patrice Chéreau que a levou à cena em Nanterre (em 1985), como uma “leitura inteligente” do original. Müller escreveu a peça em Itália, no piso de cima de uma casa rodeada de árvores onde vivia com uma companheira, enquanto a sua mulher vivia com um homem “que estava louco por ela” no andar de baixo. Ele foi um criador instigante, uma consciência feroz da Europa dilacerada do pós-guerra e inquietou e seduziu as duas Alemanhas e o teatro contemporâneo. Em 1944 é alistado na milícia nacional criada por Hitler, depois da guerra retoma os seus estudos na zona soviética, em 1961 é expulso da Associação dos Escritores da Alemanha de Leste, em 1976 um dos rebeldes contra a privação de cidadania alemã do compositor Wolf Biermann que levou à debandada de Berlim Leste de numerosos escritores para a Alemanha Federal.
Mas Muller tornou-se presidente da Academia das Artes de Berlim Oriental em 1990, mais tarde fez parte do conselho de direção do Berliner Ensemble, sofreu uma campanha pública que o acusava de colaborador da Stasi (serviços secretos e de inteligência da RDA) e em fins de 1994 foi-lhe atribuído o Prémio Europa de Teatro. Escreveu releituras de Shakespeare, nomeadamente Máquina Hamlet, Macbeth (que lhe merecerá a acusação de “pessimismo histórico”) e Anatomia Tito fall of Rome (com uma espetacular encenação do Teatro da Cornucópia, em fins de 2003, que acentua a visão do autor, de um fim do mundo ou o desejo de uma nova aurora); e também releu Brecht (após distanciar-se do seu modelo de teatro), Ésquilo e muitos outros. Um criador radical e controverso.
Mas vamos à encenação de Quarteto, que vi no CCB, em que a principal dificuldade foi entender grande parte do texto grotesco, imoral, que se relaciona com o terrorismo e a política, a beirar o cómico, devido à insuficiente projeção vocal dos atores (em boa hora o texto está disponível). É de salientar o excelente ensaio inserto no programa, “A felicidade da História”, de José Bragança de Miranda (JBM), que ilumina o espetáculo da vida em bunkers das personagens (visconde Valmont e a marquesa Merteuil que representam também em cena, como no original de Laclos, o inocente Volange e a virtuosa Tourvel) e esclarece o que é dito no sentido do que tem a ver com o nosso tempo.
No início da peça, a aristocrata Merteuil está no seu bunker de decoração clássica, vestida a rigor e deitada numa luxuosa poltrona de estilo. Há pouca iluminação e sente-se um odor como salienta o encenador. Valmont aparece vindo de um bunker contíguo. E logo “o teatro – a única modalidade de escrita que interessa ao autor – (instala-se) na fenda entre o tempo do sujeito e o tempo da história, um dos últimos lugares da utopia”, como refere Müller. Apercebemo-nos de imediato que são duas personagens encalhadas: “por rodar em seco e no vazio, um pouco como Duchamp nos dá a intuir num ready-made – a ´Roda da Bicicleta`. Se a revolução já veio e a história não chega ao fim, quando as promessas parecem adiadas indefinidamente, como pensar esse encalhamento”?, escreveu JBM.
Há que passar o tempo e Valmont diz: “A nossa sublime profissão é a de matar o tempo. Exige a nossa entrega total: há tempo a mais.” Monólogo seguido de monólogo, “Imaginai que tínhamos de viver com o lixo dos nossos antepassados. Pirâmides de porcaria até cortar a meta”, diz Valmont, “ a felicidade suprema é a felicidade dos animais”, diz Mertteuil…há que dizer alguma coisa para preencher o vazio, todos os diálogos de Quarteto são simulacros. Porque se matava no tempo de Robespierre, no início do cristianismo e depois nas cruzadas, na guerra de classes, tudo (com o tempo) se torna uma paródia do que foi. Müller afirmou que “os fragmentos têm hoje um valor particular, pois todas as histórias coerentes que usávamos para dar sentido à vida colapsaram”.
Em conversa com Wolfang Heise é sustentado que “a espiral da história destrói o centro, forçando o seu caminho através das zonas marginais (e cria-se) uma nova consciência da espécie (uma vez que tudo está estilhaçado), cujo pressuposto é a possibilidade de história universal”. Ou seja, uma nova consciência no povo anónimo, na arraia miúda com a sua vida quotidiana agarrada às suas raízes com medo de se perder e alheia às grandes transformações do nosso tempo, de todos os tempos. Mas capaz de criar uma nova consciência…penso. “O geocentrismo cujo modelo é o bunker…um espaço necessário onde tudo se decide (no) planeta”, sublinha ainda aquele ensaísta e prof. da Universidade Nova de Lisboa. Como a Comissão Europeia em Bruxelas, ou o Kremlin em Moscovo, ou a Casa Branca em Washington, ou o Palácio do Povo em Pequim, ou…
E há o sexo, o corpo, a carne, o desejo e a manipulação, enfim o princípio de tudo, não podemos esquecer que as duas personagens à sua maneira se amam ou em algum momento se amaram ou fizeram a guerra milenar entre homens e mulheres.Sexo entre ruinas com um brutal e demorado fellacio em cena, Quarteto, não esqueçamos, começa no século XVIII e termina num futuro que não acaba, que é de todos os tempos.
Beckett abordou estas questões, mas na sua obra sempre há uma exterioridade, salienta ainda Bragança de Miranda, “ uma exterioridade, embora desolada, onde é possível o nascimento de uma única folha verde numa árvore morta, (mas) nesta peça não há qualquer abertura.” As vítimas dos senhores: Volanges morre estrangulada e Tourvel suicida-se. Valmont é envenenado e Merteuil morre com um cancro.
Mas esta história na versão de Heiner Müller, dura (mais de) 200 anos (entre 1782 e a III Guerra Mundial, ainda sem data) e continuará com os seus fantasmas, os seus monólogos, Valmont e Merteuil estão a entrar outra vez em cena… com a sabedoria dos contos de fadas de Robert Wilson que o escritor alemão tanto admirava.
Um fim do mundo ou o desejo de uma nova aurora…