Elevadas ao estatuto de obras de artes, as pinturas e as esculturas (só para referir estas) passaram a ser encaradas como peças eternas, com as quais a Humanidade deveria, para seu próprio bem, dialogar ao correr dos séculos. O museu assume-se como o templo no qual depositamos os nossos tesouros, a caixa forte que preserva a nossa passagem coletiva pelo mundo. Por isso, o roubo de uma obra de arte, por mais espetacular que seja (e há muitos, tão incríveis quanto a sua recuperação), representa um corte violento nessa relação. Mas a vida, como se sabe, supera em imprevisibilidade qualquer conceção ou planeamento cultural. Ao movimento criação / exposição / preservação é preciso acrescentar uma certa dose de incerteza, uns quantos pós de acaso e outros de incúria. E assim o impensável acontece.
Deu-se então o caso de, em 2006, o Museu Rainha Sofia ter dado pela falta de uma peça do seu acervo. Acredito que não teria sido notícia se não se tratasse de uma obra encomendada pela própria instituição, que nela investiu uma parte significativa do seu orçamento anual. Talvez os alarmes não tivessem soado se não fosse uma escultura de Richard Serra, um dos mais destacados escultores das últimas décadas. E, finalmente, não se tornaria um escândalo internacional se não estivéssemos a falar de uma peça de 38 toneladas.
Se está a ouvir pela primeira vez esta história que faz parte do anedotário do mundo da arte contemporânea, não se preocupe: leu bem, Equal-Parallel: Guernica-Bengasi, a obra em causa, pesava efetivamente trinta e oito toneladas, assim por extenso para evitar erro tipográfico. E, no entanto, desapareceu – sem que ninguém consiga perceber como, quando e porquê – de um dos armazéns alugados pela instituição para albergar as suas reservas.
O que aconteceu? Foi a partir desta pergunta que Juan Tallón escreveu Obra Maestra, que sem surpresa foi considerado, pela generalidade dos jornais, um dos melhores romances espanhóis de 2022. Ao inusitado da premissa, o jornalista e escritor juntou uma engenhosa construção narrativa, que lança o leitor num labirinto de dúvidas e impressões, tão fortes e expressivas quanto as obras de Richard Serra.
O primeiro contacto com o trabalho do artista norte-americano nunca se esquece. O meu foi no Museu Guggenheim de Bilbao, também em Espanha, alguns anos depois da sua inauguração, em 1997. No piso térreo, na nave que suporta as ondulações de Frank Gehry, entrei numa floresta de aço. As suas esculturas monumentais afirmavam-se num surpreendente equilíbrio entre o peso e a leveza, a matéria e a sua modulação em curvas e torções. De grande altura e comprimento, bloqueavam a passagem, assim como a visão de conjunto, ao mesmo tempo que indicavam um caminho. Sem roteiros definidos ou obrigatórios, diante de uma escultura de Richard Serra sente-se intuitivamente que é preciso estabelecer uma relação, dialogar com o que nos parece esmagador e acolhedor.
É à raiz deste sentimento que Juan Tallón nos devolve no romance Obra Maestra. Porque também o desaparecimento de uma escultura de 38 toneladas é qualquer coisa que nos derruba e fascina. Se um livro sobre o roubo da Mona Lisa do Museu do Louvre (como Mona Lisa Desaparecida, de R.A.Scotti, que a Casa das Letras publicou em 2010) nos diverte como um bom policial de um tempo distante e sem meios de vigilância (estávamos em 1911 e até Picasso foi tido como suspeito), no caso da peça de Richard Serra a escala muda as variáveis da equação. Entramos no domínio da incredulidade e do delírio, da imaginação e do ato também ele… criativo.
Sem poder resolver o mistério e recusando habilmente a narrativa linear, Juan Tallón prolonga o nosso espanto e estranheza ao colocar-nos diante de uma vastíssima galeria de personagens que, por um motivo ou por outro, estão ligadas a este desaparecimento. Dos responsáveis governamentais à direção do Rainha Sofia, dos curadores aos industriais que construiram a obra, dos investigadores judiciais aos seguranças, dos visitantes de exposições aos moradores de prédios juntos aos quais foi colocada uma escultura de Serra, do artista norte-americano ao próprio escritor: todos falam numa primeira pessoa imaginária e extremamente sedutora, partilhando impressões, vidas comuns e excecionais ou as ironias deste caso. Entre outros imbróglios, destaca-se a falência da empresa que geria o armazém de onde a peça desapareceu; falência essa que se deveu a muito crédito mal parado, algum do próprio Museu Rainha Sofia, e a uma penhora da Segurança Social que, mais tarde, haveria de construir um edifício de escritórios nos terrenos onde deveria estar Equal-Parallel: Guernica-Bengasi…
Único e singular, Obra Maestra é um romance que viaja até às profundezas da definição de arte, traçando em simultâneo a biografia (fragmentária, minimalista, quase cubista) de um dos grandes revolucionadores da arte contemporânea. A sua pergunta “como foi possível?” tem, no reverso, a dúvida: “o que faz uma obra de arte?”. E a indefinição é reforçada pelo pedido que, entre tanto embaraço, o Museu Rainha Sofia acabou por fazer a Richard Serra: que autorizasse a construção de uma cópia. Como diz uma das personagens do romance, entre o original e o seu duplo, a verdadeira obra de arte é o seu desaparecimento.