A locução latina Natura non facit saltus (a Natureza não dá saltos) tem sido essencial para várias áreas do saber, como por exemplo a teoria da evolução das espécies de Darwin, em que a mudança é paulatina, mas a mecânica quântica parece violar esse princípio. De resto, podemos considerar que há saltos em processos que são levados a certos limites. Pensemos na chama que surge da fricção de dois paus: há um evento emergente que não é aparente no movimento repetido da fricção. As revoluções também são parentes do salto: mudam o paradigma vigente de um momento para o outro.
O filósofo Ingarden chamava tempo vazio a determinadas descrições narrativas, como aquelas que, por exemplo, dizem que se passaram dez anos, mas não diz nada sobre o que aconteceu nesses dez anos, havendo portanto um salto narrativo.
Um dos tempos vazios narrativos mais conhecidos é a infância de Cristo. Não sabemos nada desse período da vida de Jesus, que vai até aos doze anos (havendo porém quem tentasse desvelar o que encerraram esses anos, criando evangelhos com esse propósito, todos eles apócrifos). Normalmente, o tempo vazio surge nas narrativas quando o autor considera que em determinado período da história não aconteceu nada significativo ou relevante que mereça ser contado, mas no caso da infância de Cristo, o tempo vazio não é visto como algo irrisório, mas sim como um mistério que precisa de ser preenchido ou revelado.
Um salto temporal bastante curioso são as cápsulas de tempo (um objeto ou conjunto de objectos que encerram um tempo vazio, como, por exemplo, uma caixa enterrada e descoberta alguns anos depois). As cápsulas de tempo têm como condição a intangibilidade de uma certa duração, não podendo ser acedidas senão depois da passagem de um período temporal, planeado ou casual. Dá-se então um salto de um ponto do passado para outro no futuro. As cápsulas de tempo são portanto objetos que saltam no tempo.
As Voyager foram lançadas com discos que continham choros de bebés, composições de Bach e Beethoven, bem como de Blind Willie Johnson. É possível que um dia, talvez daqui a milhões de anos, alguém, presumivelmente vida extraterrestre, encontre estes discos e ouça um blues ou música barroca ou o bater do coração humano.
Stephen Greenblatt, autor do livro Swerve, identifica um momento da História como responsável pelo Renascimento. Esse momento – que se enquadra na definição de cápsula de tempo – teria sido a descoberta em 1417 do livro de Lucrécio, De Rerum Natura, cerca de 1500 anos depois de ter sido escrito. Greenblatt argumenta que as consequências do arrazoado defendido nessa obra, em particular, o atomismo, haveriam de mudar o pensamento científico e religioso, permitindo uma série de novas descobertas em várias áreas do conhecimento.
Uma das ideias presentes em De Rerum Natura, é a de clinâmen – conceito criado por Epicuro, que consiste em pequenos desvios arbitrários e imprevisíveis dos átomos –, que coloca a aleatoriedade como causa fundamental da existência de todas as coisas. Esta ideia teria permitido imaginar um universo sem necessidade de intervenção divina, em que elementos simples, os átomos, se organizam em sistemas complexos. Darwin acabaria por ser um bom exemplo disso mesmo, ao propor a evolução das espécies, introduzindo o aleatório como causa (a evolução seria resultado de uma combinação aleatória de características herdadas, postas à prova pelas circunstâncias).
É possível que Greenblatt tenha exagerado na importância da descoberta desta cápsula de tempo, mas, curiosamente, a ideia epicurista de clinâmen – e a noção de que pequenas alterações nas circunstâncias iniciais (no movimento dos átomos) seriam responsáveis pela variedade, bem como por todas as características emergentes (macroscópicas) –, acaba por descrever a tese central do livro de Greenblatt: um episódio aparentemente sem importância, como um ligeiro desvio dos átomos, acabaria por alterar o pensamento científico em toda a Europa. E assim, de repente, a sociedade deu um salto gigantesco no que respeita à compreensão do mundo e da Natureza, graças à descoberta de um objecto que é ele próprio um outro tipo de salto: uma cápsula de tempo. J