A Leonor Xavier escapou a vida inteira a deixar de ser menina. Não sei como fez, mas ganhou idade sem jamais perder o privilégio de exercer a infância. Não era trapalhona para tarefas e responsabilidades, era capaz de ternura, dos abraços que só os inocentes dão, era capaz de começar coisas, falar de ideias como quem ainda tem sonhos para alcançar e partilhar. Que maravilha me trazia quando nos encontrávamos e ela reclamava para que fôssemos mais amigos. Tínhamos um compromisso de pele, nossa biologia decidira a compatibilidade e facilitara o entendimento. Que pecado se tornava que não estivéssemos mais presentes na vida um do outro.
Podíamos ter ido juntos ao Brasil para nos enchermos do que tanto amávamos. As suas memórias brasileiras eram todas importantes, feitas de jantares históricos. Conhecera as estrelas e recebia tantas em sua casa como eterna embaixadora da nossa e da cultura deles. Contava-me como abraçava certa cidadania tropical, fascinada com a liberdade maior das pessoas, o descomplicado dos corpos, a beleza da arte, a força, e a pertinência de ser uma nação por conquistar o mundo. Que maravilha que o Brasil estivesse a caminho de conquistar o mundo. Que frenesi o de assistir ao levantamento de sua identidade cada vez mais cristalina.
Um dia, na reunião de júri de um prémio em que coincidimos como jurados, dizia ela a outra colega: está sempre com essa cara arrumada. Cara de apaixonada. Puta que pariu os apaixonados, que a vida não está para amores. Era um comentário tão extemporâneo, ela tão acabada de chegar e sentar à mesa, que a outra, em toda a sua idade, sorriu como as estátuas de pescoço preso e depois ruiu. Rimo-nos tanto que não havia maneira de voltarmos a pensar na Maria Velho da Costa, que julgo terá sido a vencedora nesse ano. Debatemos a maravilha de dizer palavrões entre as pessoas educadas. O palavrão para educar melhor, porque servia para baixar a guarda, criar paridade, impedir peneiras.
Não sabia muito bem se ainda vinham comboios para o Porto. Achava que já não se fariam viagens demoradas, que toda a gente teria carro e as estradas eram boas também como prova disso. Tantas vezes nos rimos dessa primeira conversa, quando marcámos a entrevista que me viria a fazer logo depois de eu ter vencido o Prémio Saramago. No jantar com Saramago, ela do outro lado da mesa, era quem me interpelava mais vezes, como se já estivesse ansiosa por sermos amigos, como as crianças aflitas por irem brincar. E eu, nervoso e feliz, agradeci aos santos a presença dela, que era de uma descontraída normalidade e de um frontal carinho que me permitiram acalmar.
Olhava com um sorriso malandro, meio de baixo para cima, como sensual e em análise, não sei bem explicar. Não era nada de gestos comuns. Era bonita, os olhos claros e lindos, a vontade de saber e de dizer. Contou-me imediatamente sobre amigos no Porto e sobre a minha geração, na qual depositava muita esperança. Chamava muito pela Nélida Piñon, que tratava por tu e com quem se ria por piadas muito cúmplices. E eu estava ao lado da Nélida Piñon e tentava não trocar os talheres nem os copos e entendi naquela noite que a Leonor Xavier me salvava de todo o desamparo, me acolhia com lealdade, sarava meu medo de estar apenas deslumbrado e de não aceder à lucidez num momento de tão grata alegria.
Não teremos mais a Leonor nas melhores mesas. Não me trará aquele sorriso de boa fé. Estaremos bem mais sozinhos, por mais que a lembremos. Que pena, Leonor. Eras a menina mais querida. A mulher mais querida que, por minha tão grande honra, me acolheu, me deixou chegar perto. Espero merecer sempre essa generosidade, porque é muito por ti que meço a generosidade entre quem trabalha nos livros.
Creio que em todas as conversas que tenho tido com a Nélida Piñon se disse o teu nome. Estás como aquele metal fundente que fazem as pessoas pertencerem-se para sempre. Que orgulho tenho nisso. Que sejas a razão pela qual nos amamos muito mais uns aos outros. Obrigado, Leonor. Muito obrigado. E, parabéns por tanto. J
A Leonor Xavier escapou a vida inteira a deixar de ser menina. Não sei como fez, mas ganhou idade sem jamais perder o privilégio de exercer a infância. Não era trapalhona para tarefas e responsabilidades, era capaz de ternura, dos abraços que só os inocentes dão.