A XXI Bienal Internacional de Arte de Cerveira cumpre calmamente a normalidade possível e reitera sua importância com maravilha. Decorrendo em menos espaços, um pouco mais pequena do que em outros anos, mas nunca pequena e longe de insignificante, dá a ver alguns trabalhos que me emocionam, numa vastidão de boas escolhas.
Não posso deixar de destacar primeiro uma curadoria de Fátima Lambert, cujas curadorias adoro e através das quais descobri alguns dos artistas recentes que mais admiro. Para Cerveira, este ano, Lambert juntou 15 escritores, 15 artistas plásticos e 15 compositores para a produção de 15 obras em torno do tema “De casa para um mundo”, e os resultados são brilhantes. Zulmiro de Carvalho com Filipa Leal e António Victorino d’Almeida ficaram perfeitos, como Albuquerque Mendes a trabalhar versos de Capicua e composição musical de Ana Seara. Belos os versos de Daniel Maia-Pinto Rodrigues sempre com sua ternura inusitada: “É este corrimão./ Se me sentasse nele/ desceria até à tua juventude.”; os desarrumos excecionais de João Gesta: “Uma curva francesa decide atravessar/ o Alentejo às escuras.”; a tradução de Francisco Duarte Mangas para a pandemia: “a peste fareja-nos o medo/ mãos lavadas/ coração em pousio”; o receio em Rosa Alice Branco: “A casa perde o meu rasto/ ao guardar-me as sombras./ Pela janela o amanhã desabriga.” António Olaio, Cristina Ataíde, Francisco Laranjo, Sobral Centeno ou Isaque Pinheiro estão entre os restantes artistas plásticos. António Pinho Vargas, Inês Badalo, Sérgio Azevedo ou Carlos Marecos estão entre os demais compositores. A pequena sala para esta coletiva condensa de facto algumas das melhores obras que se podem ver em Cerveira este ano. Fica a impressão de ser promessa de maior espaço e otimização da mostra das valências plástica, literária e musical de cada obra.
No salão principal da Bienal, para manuseio, um livro de artista de grandes dimensões, da autoria de Isabel de Sá, propõe ainda uma brilhante ligação entre as artes plásticas e a palavra. Isabel de Sá, uma das mais importantes poetas do país, uma das minhas favoritas do mundo, é inteiramente feita de resistência e ferida, impedindo que as coisas se mantenham indiferentes ou mesmo incólumes. O seu pensamento é o da sarcástica ostentação das idiossincrasias do mundo. Há muito que se dedica à criação de livros de artista, conheço-lhe alguns dos mais exuberantes, e este, intitulado “A Beleza do Imperfeito”, é uma das peças mais inusitadas e magníficas da Bienal.
De particular grande dimensão, o “Homem Bicho”, que Agostinho Santos criou, num tríptico poderoso onde a sua busca por uma expressão da degeneração humana está em causa, é outra das obras que mais nos solicita e intriga. Como Acácio de Carvalho, em outro sentido, com “A propósito do funeral de Neruda”, propõe uma deslumbrante, profunda, visão. Uma certa “Ilha dos Mortos” que se indefine e fulge num jogo de cores inesquecíveis. Em contexto distinto, Beatriz Albuquerque participa com um pormenor de um trabalho mais extenso a que deu o título de “Trabalhar de graça (work for free)”, e onde, como nos habitua, se coloca também como performer, problematizando o lugar do artista e do cidadão, erudindo as fronteiras entre autor e obra, arte e participação cívica.
Marcantes as peças de Catarina Machado (seus oceanos são cada vez mais exuberantes), Isabel Lhano (suas mãos e pés sempre perfeitos), Manuel Horta (que me suscita uma espécie de onirismo primordial, sonho da terra que ensaia a vida, bem antes de haver gente para ver ou entender), Francisco Trabulo (de quem também adoro as figuras negras, pequenas, que vejo pelas casas de tantos artistas amigos), Graça Martins (certa despedida, pura poética), Manuela Bronze (que linda utilização do tecido, e que feliz gestão das cores), Paulo Nunes (brilhante composição), Sobral Centeno (azul profundo, suas figuras sempre me parecem sacras, solenes).
São muitos mais os artistas e as obras de interesse. Anoto apenas o que mais me comove, com a certeza de que ainda voltarei para outra visita demorada. A mais prestigiada Bienal Internacional de Arte de Portugal ficará patente até ao final de dezembro. Tempo bastante para planear subir à vila raiana, onde não se pode perder o Convento de S. Paio, estrutura dos franciscanos do século XIV e que foi recuperada por José Rodrigues, albergando hoje um autêntico museu com o espólio do grande mestre.
Bienal de Cerveira
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