No dia do armistício, Cláudio permaneceu encerrado no seu minúsculo apartamento. Ainda tinha atum e feijão para mais três dias. Corn flakes, para um pequeno almoço nutritivo. Máscaras, luvas e gel desinfetante bem racionados. Pela janela, observava as ruas a encherem-se de gentes. Homens e mulheres abraçavam-se, sorrindo nervosamente a cada gesto, a cada toque. Alguns, provavelmente, nunca se tinham abraçado antes. Havia quem cantasse a propósito de nada e os carros buzinavam como se o país tivesse ganho uma grande competição desportiva. Os donos dos restaurantes convidavam novos e velhos clientes a entrar, oferecendo menus de degustação a preço especial de reabertura. As lojas enchiam-se de serpentinas, com os vendedores à porta, gritando pregões, como se estivessem na feira da ladra. Na televisão, repetiam-se os discursos entusiasmados de políticos e dirigentes do mundo inteiro, falando de um futuro radioso e menos radioativo. Jovens prometiam passar a noite em claro, dispostos a recuperar de uma só vez todos dias de clausura. Alguns arriscavam tanto, julgando-se doravante imortais, como se de outra doença não pudessem morrer senão daquela de que inventaram a cura, que quase se matavam.
No dia do armistício, Cláudio manteve-se encerrado no seu apartamento minúsculo. No entanto, pôs-se à janela, como costumava fazer, para desoladamente descobrir que ela já não estava lá. A vizinha que durante os tempos de cárcere se debruçava na varanda e por vezes lhe sorria, por não ter mais ninguém para quem sorrir, e com quem trocava mensagens numa linguagem gestual por eles inventada, agora descera à rua, como todos os outros, e andaria por lá, entre beijos e abraços, celebrando o facto de os poder dar. Se ele se desse ao trabalho de descer as escadas e atravessar o patamar, talvez também recebesse um abraço e quem sabe um beijo da vizinha. Mas não estava para aí virado.
No dia do armistício, Cláudio permaneceu encerrado no seu minúsculo apartamento. Já se habituara àquelas paredes, a observar de cima a rua, não havia nada lá fora que quisesse desesperadamente fazer. Sempre fora homem de poucos amigos e o isolamento forçado fizera-o descobrir a vocação de eremita.
Ligou a televisão e folheou um livro já lido à espera que o tempo passasse. Mas o barulho lá fora era insuportável. Em desespero, abriu a janela e aos berros começou a ralhar contra a falta de civismo daqueles que não o deixavam descansar. Ninguém lhe ligava nenhuma. Até que entre a multidão, ela inclinou-se para si. Sorrindo, na tal linguagem gestual inventada, a vizinha desenhou um coração com as mãos e atirou-lhe com um sopro. Num gesto de Mimo, ele agarrou-o com um salto como se fosse uma bola arremessada. E, rompendo o protocolo, gritou-lhe um convite: “Não quer vir jantar cá a casa? Hoje fiz feijoada de atum”.
Homem do Leme: Armistício
No dia do armistício, Cláudio permaneceu encerrado no seu minúsculo apartamento. Ainda tinha atum e feijão para mais três dias.
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