O que nos desarma em Adília Lopes é a impressão de que a mulher-a-dias desatou a escrever poesia. A estranheza que nos causa é a da erudição inesperada de uma doméstica, com todas as suas questões práticas e filosóficas passadas pela estética crua de versos sem um propósito de beleza, apenas a pragmática anotação dos tópicos.
A poesia de Adília Lopes surpreende exatamente pelo despido modo de dizer, tornando todas as coisas em pontos de uma enumeração ferida no seu potencial emotivo. O que se diz, por mais importante, impertinente, descarado, íntimo, indizível, torna-se simples e sincero como se ficasse imediatamente destituído da sua característica inicial. O que se diz é vertido para o poema como um atributo do poema que não pode mais regressar à realidade, sob pena de sucumbirmos à despudorada tentação de estarmos a ler, afinal, um diário que não é mais secreto.
Cada texto contribui, inevitavelmente, para uma estética cujo ponto fundamental é exatamente a recusa da estética. Se é verdade que há um ritmo, até extremamente marcado, uma sabedoria exímia na arte de contar, que doseia informações e lida com o inusitado para afastar qualquer mesmismo ou aborrecimento, também é verdade que os versos se sucedem numa imitação poderosíssima da oralidade. Versos que imitam o que não são versos. Ler é escutar o que honestamente se confessa, como se estivéssemos perante a prova de que para a literatura basta a sinceridade. Adília Lopes parece provar que perante a capacidade da produção desse efeito de transparência absoluto das ações e das vontades o discurso se torna suficientemente raro e instigador, como compete à arte. O discurso da sinceridade, porque raro e instigador, é literatura.
Claro que se passa assim com a poesia de Adília Lopes também porque o que escreve é a aturada construção dessa personagem, biografada até à exaustão desde há 30 anos. Desde 1985, estreando com Um Jogo Bastante Perigoso, Adília Lopes, ou Maria José, vem pensando e repensando a vida mediante o que foi, o que é e o que gostaria que viesse a ser. Com isto, e depois de uma larga quantidade de títulos publicados, pudemos ler como se assistíssemos efetivamente à vida de alguém. Talvez nenhum outro autor tenha criado uma obra assim, cujo comportamento no tempo nos induza tanto ao acompanhamento da vida de alguém. A poesia mais convencional tende a esconder biografias. Já com Adília Lopes a questão da biografia é central. Não se entende nada do que escreve se não ativermos à furiosa necessidade que revela em ter um passado, uma família, animais domésticos, habitar, amar, ler. A poesia de Adília Lopes é a invenção da vida. Importa menos se a autora coincide ou não com a personagem. Importa o efeito quase despudorado e a coerência, a sempre frontal expressão e a reincidência nos assuntos, como recordações que se vão adensando de livro para livro.
A poesia de Adília poderia chamar-se Biografia, uma de alguém que, real ou ficcionado, nos obriga a lidar com as definições incómodas da solidão, da rejeição, da espera, da utilidade cruel da leitura, da obsessiva necessidade de se pensar no amor que se não tem.
Quando Fernando Pessoa dizia que as cartas de amor são todas ridículas poderia ter dito que assim são também os diários. De facto, os textos perante os quais parecemos usar de uma vulnerabilidade quase proibida, como se nos ameninássemos, propendem para o confrangedor. O autor que não se policia perante o confrangimento acaba por provocar tal sentimento no seu leitor, que lê com certa vergonha alheia. Lê, de todo o modo, irresistivelmente. A poesia de Adília Lopes talvez nos provoque esse quase riso devido à vulnerabilidade que sugere. É como se a autora viesse, com todas as suas intimidades declaradas, pousar nas nossas mãos. Lidamos imediatamente com a ética de que somos capazes. Se rimos, é seguro que rimos nervosos. O humor é outra coisa. Ser-se leitor de Adília Lopes é aprender o respeito. Compreender a diferença e aprender o respeito. Assim, de outro modo, nenhum poema é ridículo. Apenas a imaturidade de quem o lê pode tornar o poema insuportável.
Publica-se agora Manhã. Novo livro que se comporta como uma súmula. Não recolhe textos publicados, recolhe elementos que surgiam aqui e ali à espreita, como se fosse agora feita uma organização. Fico com a impressão de que Adília Lopes simplifica a sua personagem. Diz sem a revolta de outros tempos. Ela diz como quem gosta de ter memória e já não como quem se queixa de ter ou não ter, de ser ou não ser. Manhã é o mesmo que fazemos todos quando nos apaziguamos. Passamos a falar de cada episódio como passível de nos ter conduzido a um qualquer melhor juízo. Como se houvesse uma gratidão, acima de tudo, que não se quer perder. Em certo sentido, a mulher-a-dias não só ganhou alguma erudição, ela ganhou uma verdadeira sapiência. Está no que diz como mestre. Mais encontrada do que nunca. Belíssima, como sempre.