Nos jardins do Palácio do Catete, antiga residência oficial do Presidente da República do Brasil, no Rio de Janeiro, até há pouco reuniam-se diariamente anciãos para participar nas serestas, fins de tarde musicais protagonizados por instrumentistas e cantores amadores. Um mundo de magia e beleza extrema (inviabilizado pela pandemia) que o realizador luso-franco-brasileiro retrata em Paraíso. Um documentário que depois de passar pelo IndieLisboa chega às salas portuguesas no próximo dia 16.
Paraíso marca o regresso de Sérgio Tréfaut ao Brasil, país onde nasceu, mas que deixou aos 10 anos, acompanhando a família que escapava das atrocidades da ditadura de militar. Filho de um português, o jornalista Miguel Urbano Rodrigues, e de uma francesa, Fleurette Rossi (retratada no seu filme Fleurette), passou parte da sua vida em França, licenciando-se em Filosofia na Sorbonne, mas foi a partir de Portugal que construiu o seu percurso artístico e profissional. Assim, foi diretor do DocLisboa e realizou filmes marcantes como Os Lisboetas, Outro País, Viagem a Portugal, Treblinka, Alentejo, Alentejo ou Raiva. Contudo, sempre teve a ambição de regressar ao país onde nasceu, coisa que fez em 2018, também com o pretexto de realizar este Paraíso, filme que mostra o que mais gosta no Brasil. Um filme realista e poético, um convite à vida, em que a música popular brasileira é veículo, alma e linguagem.
JL: Numa altura em que parte da massa criativa brasileira sentiu-se forçada a emigrar, resolveu regressar ao país. Porquê?
Sérgio Tréfaut: É verdade. Fui para o Brasil em finais de 2018, ainda tive a oportunidade de votar nas presidenciais. Presenciei uma vinda massiva de brasileiros para Portugal e, durante o início da presidência de Bolsonaro, foram cortados todos os apoios ao cinema. As pessoas do meu meio foram levadas a abandonar o país para poder trabalhar. Mas é uma questão transversal à sociedade. Basta entrar num táxi ou num uber no Rio de Janeiro para ser questionado sobre que fazer para sair do país.
Mas porque resolveu fazer o movimento contrário, em contracorrente?
Por uma questão identitária. Fui arrancado do Brasil quando tinha dez anos. O meu irmão fora preso e quase assassinado pela polícia política. Por isso saímos em 1976 para a França e depois para Portugal. Cresci sempre com essa sensação de exílio. Embora tivesse as nacionalidades francesa e portuguesa, a minha entidade mutilada estava no Brasil. Sempre quis regressar. Quando entrei na faculdade pedi um empréstimo para voltar a ver o Brasil. Tive uma relação complexa, porque não gostei de São Paulo, onde nasci, mas amei o Rio. Senti que era uma cidade feita para mim e que um dia iria viver para lá. Quando cheguei aos 50 anos, decidi: é agora ou nunca! O Brasil ficou numa péssima situação política, mas não podia deixar de ir. E como recebi o apoio de Portugal e França, consegui ainda fazer um filme, coisa que se tornou impossível para os meus colegas brasileiros, que viram todos os apoios cortados.
Apesar da situação terrível do Brasil, é um filme em busca da luz, algo de bom que resiste…
Tentei encontrar algo pessoal. Dentro de um país com os valores televisivos da Globo, com as cidades destruídas, quis saber como poderia sobreviver o antigo Brasil. As personagens deste filme são belíssimas e monumentais. São anónimas, mas têm uma grandeza que me dá uma felicidade retratar. E filmar isso, enquanto foi possível, deu-me um enorme prazer. O significado acabou por ser diferido devido às circunstâncias. Eu queria continuar a filmar, mas os jardins fecharam e era impensável chegar perto de alguém, mesmo com máscara. Filmei muito as serestas, mas a parte de ir a casa das pessoas foi interrompida. Mas a verdade é que elas dizem o essencial através daquilo que cantam.
O filme foi atacado pela pandemia…
A Covid atacou personagens importantes que logo no início da pandemia já não tinham lugar nos hospitais; e outras que não tiveram tratamento para outras doenças. Há personagens que não conseguimos saber o que lhes aconteceu. Fiz uma projeção no dia 25 de julho, e convoquei quase todos. Aquela senhora de 100 anos apareceu. O filme retrata uma geração que desapareceu, com um Presidente que tem uma ideologia eugenista, que acha que os mais fracos são dispensáveis da sociedade. E houve de facto um desaparecimento enorme, por uma decisão política de desinteresse em tratar esses cidadãos
Essa mensagem política chega mais tarde, o que vemos é sobretudo o lado do ‘paraíso’… O filme foi tomado pela realidade?
O filme não foi pensado para isso, mas acabei por retratar as grandes vítimas. Já existia um estigma pré-pandemia de que as pessoas mais velhas não têm valor e que aos 80 anos se é dispensável, não havendo felicidade possível. Acabei por retratar muitas pessoas que dizem explícita ou implicitamente que nunca foram tão felizes como naquela idade. Estas pessoas perderam a vida num momento em que eram felizes. E o descaso governamental é responsável por isso. Tenho a certeza que o nome de Jair Bolsonaro figurará na História associado a 600 mil mortes ou mais.
O filme é também um hino à própria música, como ideia de felicidade, de terapia, de estar em comunidade. A música já tinha aparecido de forma clara noutros filmes seus, como o Alentejo, Alentejo, dedicado ao cante, mas aqui atinge ainda outra dimensão…
Existe um parentesco muito claro entre o Alentejo, Alentejo e este filme. Embora o do Alentejo exprima uma transmissão entre gerações, falando do cante alentejano, tem como prato forte pessoas com uma idade avançada e inclusive um médico que fala do cante como terapia, e um poeta popular, de 90 e poucos anos, que fala do cantar como aquilo que permite que as pessoas se reúnam para serem felizes e se amar. Ali quis fazer um filme que fosse uma bandeira para quem ama o Alentejo. Aqui é diferente. O fator identitário mais forte do Brasil é a música popular. A Maria Bethânia é uma sacerdotisa, o “Carinhoso” é o hino mais transversal do país, algo que todos os brasileiros sabem cantar. Essa força identitária faz com que pessoas se juntem pela música. Eu ponho a mão no fogo que, neste momento, há cem pessoas no mundo discutindo Caetano e Chico. A MPB é a conversa do dia-a-dia no Brasil. As pessoas aprendem a falar com as letras das canções. Claro que no filme há esse lado terapêutico, mas mais do que isso há o amor, os afetos…
Como aquela cena lindíssima do senhor na cadeira de rodas que quase namorisca através da música com outra senhora…
Ele está a puxar pela memória de uma senhora com Alzheimer. Ela quase não sabe dizer nada, mas lembra-se das canções da juventude. Mas também há a declaração de noivos cantada ou a senhora de cem anos que fala do seu primeiro amor.
Realça-se também o espírito comunitário, que nos parece muito espontâneo. Como funciona aquele grupo?
Aquilo é muito de vontade própria. Partiu da iniciativa de um seresteiro que começou a juntar pessoas. Não têm apoio financeiro, mas naquela altura eram bem acolhidos pela direção do palácio. Até março de 2020 havia oito serestas por semana, cada uma dura três horas.
O filme traz uma enorme esperança para a velhice, mas depois termina com grande pessimismo, como se o fim daquilo fosse o fim do mundo…
O filme não é pessimista nem otimista. O filme retrata a possível felicidade de pessoas com mais de 80 anos e é interrompido pelas circunstâncias, porque houve uma pandemia e uma política de estado que não protegeu aquelas pessoas. Eu acredito que existem ciclos. Mas há coisas que são irreversíveis. Um problema maior do Brasil é a destruição contínua do património natural e a destruição das populações indígenas. Há uma ideologia de que a identidade brasileira vem do futuro, o que faz com que o que seja passado não tenha valor.
Como é que se equilibra entre o Brasil dos seus afetos e esse cenário terrível que agora encontra em volta?
Será que por eu não estar na Índia a pobreza de Calcutá deixa de existir? Ou será que se eu me refugiar na Suécia acabam os problemas do mundo? O mundo está como está independentemente do lugar em que eu esteja. Vivo em Santa Teresa, com uma renda que posso pagar, vista sobre a natureza. Vivo sem medo, num lugar agradável, sem me mentir sobre a realidade. Existe uma população mais pobre do que a das favelas, que está ao lado de minha casa. Não vou fazer de conta que não houve campos de extermínio para viver melhor.
Vai continuar a viver no Brasil? Qual é o seu próximo projeto?
Estou instalado no Rio de Janeiro, mas passo muito tempo em Lisboa. Estou na montagem final de A Noiva, uma ficção sobre as viúvas da jihad. As jovens que tinham saído de casa aos 15, 16 anos para se casar com um príncipe encantado assassino jihadista. Foram levadas por um estranho idealismo. O filme segue uma dessas jovens. E encontrei a Joana Bernardo, uma jovem atriz deslumbrante, que tem 20 anos, mas parece ter 14.