Tardou, mas miraculosamente acabou por acontecer. Trinta e seis depois de concluído, O Movimento das Coisas, o primeiro e único filme de Manuela Serra, tem estreia comercial nas salas portuguesas. Uma obra que se tornou um objeto mítico do cinema português, um segredo por revelar. Mas estreá-lo trata-se essencialmente de um ato de justiça poética, conseguido graças à persistência da The Stone and the Plot, uma jovem e dinâmica produtora, que tem insistido num caminho alternativo, entre outras coisas com a tradução de importantes livros cinéfilos. Para a produtora e distribuidora é um enorme risco e desafio, para Manuela Serra, aos 74 anos, trata-se do consolo possível. Ao JL, a realizadora confessa: “Estava segura que o meu trabalho ia perdurar, mas já não esperava que a sociedade ainda o reconhecesse comigo em vida”.
A história é quase tão longa como o jejum do próprio filme e está envolta numa nuvem de machismo, com alegadas situações de assédio. Tudo contribuiu para que Manuela desistisse de prosseguir a carreira de realizadora, tornando-se um dos mais flagrantes elos perdidos no cinema português. Isto porque em O Movimento das Cosias nota-se efetivamente o talento e o olhar de uma autora e o desenvolvimento de uma linguagem.
Manuela Serra estudou cinema no Institut des Arts et Diffusion, em Bruxelas, onde terá conhecido, entre outros, Rui Simões. E, no regresso a Portugal, depois do 25 de Abril de 1974, trabalhou com o realizador Rui Simões no mais icónico dos seus filmes, Deus, Pátria e Autoridade. Contudo, admite: “O meu trabalho no filme foi pouco relevante – organizava e sincronizava o material.” Contudo terá sido importante para a sua ‘formação’: “Conseguia adivinhar que operador de câmara fazia cada uma das filmagens. E foi assim que escolhi o operador para O Movimento das Coisas.”
O seu filme nasceu no seio de uma cooperativa de realizadores. A primeira ideia era fazer um filme coletivo. A realizadora explica: “Tentei não me aventurar na realização sozinha, mas apercebi-me que tinha que ser assim. O que as outras mulheres queriam fazer era mais do género do Deus, Pátria e Autoridade. A minha ideia acabou por se tornar voluntariamente muito solitária.”
Na base do filme está a desilusão com a crise de valores da cidade e a busca de uma certa ‘pureza’ no campo. Assim, apesar de ser nada em Lisboa, Manuela partiu em busca de uma aldeia que cumprisse o seu imaginário. Acabou assentar arraias em Lanheses, no Alto Minho. Antes de começar propriamente o filme, foi viver para lá, entrelaçar-se com as pessoas. “Apesar de não ser católica, comecei por ir falar com o padre, que muito me ajudou”. Nas famílias, com quem trabalhou mais de perto, limitava-se a ‘estar’: “Ficava para ali a ouvi-los conversar, a ver a vida acontecer”. É esse trabalho preparatório o segredo da naturalidade do filme.
O Movimento das Coisas é um filme poético, contemplativo, centrado em três famílias, mas que mobilizou uma aldeia inteira. Há sobretudo um saber olhar, com importantes elementos estilísticos, como o uso exemplar do zoom, fruto da escola televisiva do operador de câmara, mas também um tempo muito próprio, lento, no mais assumido contraste com o tempo da cidade. Manuela conta: “A Dominiqiue Roland, a montadora, passado 25 minutos de filme disse-me: “‘Mas não se passa nada…’ Demorou tempo até que as pessoas entendessem a linguagem do filme.”
E talvez por isso, como ela conta, algumas pessoas importantes na altura o tenham rapidamente considerado um objeto sem interesse… Essa opinião propagou-se, apesar de outros a terem felicitado pelo resultado, incluindo Manoel de Oliveira, Paulo Rocha, João Bénard da Costa e António Reis.
Terá sido essa desconfiança generalizada o que impediu a estreia do filme, apesar deste ter tido uma passagem por festivais importantes no estrangeiro, como o de Manheim. Manuela desabafa: “O meio cinematográfico era profundamente machista e misógino. Era inadmissível uma mulher fazer um filme que não fosse uma história de amor ou qualquer coisa assim. Ninguém estava à espera daquilo. Esperavam mais algo que mostrasse o sofrimento das mulheres do Minho. Ou algo que tivesse um substrato político“
Depois da experiência com O Movimento das Coisas, Manuela Serra estava segura de que havia descoberto a sua vocação como realizadora. Só que no projeto seguinte, que se chamaria Ondulações, ondas ou O Movimento das Ondas, os obstáculos revelaram-se intransponíveis. “Houve quem descobrisse um meio de chegar lá, eu não descobri o meu”. A ideia era fazer o contraponto, com um olhar sobre a cidade, e meio caminho entre o documentário e a ficção. “Queria introduzir atores profissionais entre as pessoas. Na altura, Lisboa estava muito carente de infraestruturas e as pessoas tinham uma vida horrível. Era isso e as praias. Queria brincar com as ondas das praias e as ondas da cidade.”
Ao tempo o Instituto do Cinema passara a dar preferência a projetos com um produtor associado. Então, para apoiar o financiamento do filme, a realizadora fez todas as tentativas possíveis: “Qualquer porta a que eu batesse se fechava. Na melhor das hipóteses recebia um não redondo, nas outras faziam sugestões interessantes para eles, mas nada interessantes para mim.” E concretiza: “Os motivos que me levaram a pôr definitivamente uma pedra no assunto foi receber certo tipo de convites… Na altura, os homens muito poderosos sentiam-se à vontade para fazer propostas a mulheres, eu não quis entrar por essa porta. Não devo ter sido a única vítima. Havia abuso de poder e colocaram-me em situações extremamente difíceis. A maioria deles já morreu e os crimes prescreveram.”
Não querendo adiantar nomes, Manuela Serra considera que houve uma grande evolução a nível de costumes e as discriminações de género tendem a ser mais ténues. Mas facto é que, perante isto e o fim da cooperativa, a realizadora ficou isolada e cinema deixou de ser opção. “Nunca me recompus. Não me consegui encaixar na sociedade, senti uma grande inadaptação. Era incapaz de aguentar aqueles trabalhos que a família arranjava. Quando fiz o filme, achei que era mesmo aquilo que eu queria fazer na vida. Uma coisa que dá mesmo muito trabalho, mas de que eu realmente gostava. Era aquilo que eu queria na vida. A partir daquele momento decidi que não queria mais ver cinema, foi um afastamento radical.”
Manuela Serra, que esteve agora a montar o trailer do filme, juntamente com membros da equipa de The Stone and the Plot, diz que ainda olha para a sua obra com prazer, sabendo mesmo que pequenas alterações faria para que o filme ficasse “ainda melhor”. E, 35 anos depois da sua conclusão, chegou mesmo a voltar à aldeia de Lanheses, com um grupo de jovens do Fundão: “As crianças são agora mulheres, houve pessoas que morreram, outras já não estão lá”. Se lhe perguntamos porque não fazer um filme sobre Lanheses, 35 anos depois, ela responde: “Uma pessoa que faz muito pouco tem que fazer qualquer coisa que ainda não esteja feito. E isso já foi feito. ”
Mas, ao mesmo tempo que constata que agora já é tarde demais, não recusa liminarmente a hipótese de voltar à realização, contudo afirma: “Uma pessoa não faz filmes assim. Tem que se estar sempre a alimentar o espírito com coisa ligadas ao cinema. Já houve quem se manifestasse interessado em produzir um filme meu. Mas eu teria de me recompor, de ter um bom nível de vida, etc. “
Ficamos na expectativa e, entretanto, podemos finalmente ver ou rever O Movimento das Coisas, uma grande obra perdida do cinema português que o tempo se encarregou de nos devolver. J