Portugal é país na periferia da Europa, com forte tradição de emigração e de pequena escala económica. No que se refere ao cinema, uma indústria cultural de elevados investimentos com grande penetração popular, apenas um reduzido número de realizadores portugueses logrou obter reconhecimento internacional. É o caso muito especial de Manoel de Oliveira, João César Monteiro e Pedro Costa (recentemente premiado em Locarno, Chicago e La-Roche-Sur-Yon com o extraordinário Vitalina Varela – e ainda um longo caminho pela frente). Todos com um cinema de autor e pouco apelo popular. E é também o caso especial de Ruy Guerra: português nascido em Moçambique, realizador de cinema, destacado impulsionador do Cinema Novo Brasileiro juntamente com Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Carlos Diegues. Como ele próprio diz: “português de passaporte”.
Muitos realizadores do cinema mundial fizeram as carreiras fora do seu país por razões políticas ou condições de mercado. É o caso, por exemplo, de Alfred Hitchcock que iniciou o seu trabalho na Grã-Bretanha, mas se consagrou nos EUA, Roman Polanski, Fritz Lang, Otto Preminger, Billy Wilder, Max Ophuls, Douglas Sirk e muitos outros europeus, sobretudo alemães e austríacos fugidos do nazismo, que se tornaram conhecidos mundialmente no cinema norte-americano.
Certo dia, Ruy Guerra (RG) mostrou-me cópia de um documento da PIDE, de 3 de março de 1952, em que são dadas instruções superiores para inspeção de bagagem e sua detenção por motivos políticos (tinha “22 anos de idade”), tão logo o navio “Império” atracasse no porto de Lisboa, vindo de Lourenço Marques. Ele permaneceu seis meses em Portugal com um processo que o perseguiu durante muitos anos. E foi para Paris fazer o curso de cinema no Idhec – Institut de Hautes Études Cinématographiques que terminou em 1954. Portugal ficou para trás.
A sua biografia editada no Brasil, de Vavy Pacheco Borges, Ruy Guerra – Paixão escancarada (Ed. Boitempo), foi apresentada na Cinemateca, em Lisboa, acompanhada do documentário de longa metragem O homem que matou John Wayne (2016), sobre a sua vida e obra, realizado por Diogo Oliveira e Bruno Laet. Com vasta obra cinematográfica em vários países e premiado em festivais internacionais (nomeadamente Ursos de Prata no Festival Internacional de Cinema de Berlim com Os fuzis, 1964, e A queda, 1976), RG trabalha em outras áreas artísticas e culturais no Brasil. Por exemplo: encenador de teatro de importantes peças como Fábrica de chocolate, de Mário Prata – “em que é denunciado o lado mais infame da tortura, aquele do torturador”, a propósito da morte do jornalista Vladimir Herzog – e Exilados, de James Joyce; parceiro de Chico Buarque de Holanda em músicas e adaptações para cinema de suas obras – além de marcante intervenção política.
No fim dos anos 70, no Rio de Janeiro, estava eu em funções diplomáticas na Embaixada de Portugal no Brasil, viviam-se anos de chumbo da ditadura militar, estava no cárcere Alípio Freitas, o editor português Victor Alegria fora preso em Brasília e escapara da morte por intervenção da Embaixada, entre outros Fernando Moura, resistente à ditadura, tinha também a polícia política no seu encalço. Durante um longo almoço Ruy Guerra deu-me conta das suas preocupações e disse-me “já ter recebido avisos” de pessoas ligadas à repressão política e combinámos que a partir do dia seguinte ele me telefonaria todos os dias por volta das 20 horas. Se não o fizesse é porque teria sido detido e eu, com o apoio da Embaixada, trataria das ações necessárias à sua localização e divulgação no estrangeiro da sua situação, sobretudo em Portugal e França, onde ele dispunha de apoios influentes nas áreas política e da smprensa. Certa noite, talvez um mês depois, ele não telefonou, eu pus-me em campo atrás de amigos comuns…e encontrei-o. Ele tinha-se esquecido. A nossa amizade solidificou-se.
Em 1980 RG realizou para a televisão francesa o episódio A carta roubada, baseado em Edgar Allan Poe (os outros episódios da série foram realizados por Claude Chabrol, Luis Buñuel, Alexandre Astruc e Maurice Ronet), com rodagens em Sintra, Alfama e Casa dos Bicos, interpretado por Maria do Céu Guerra que guarda excelentes recordações das relações com o realizador.
Poucos anos depois, Ruy partiu para Moçambique, onde manteve amizade com Samora e Graça Machel, realizou os primeiros filmes da cinematografia do país (Mueda, memória e massacre, várias curta-metragens e a série Os comprometidos: atas de um processo de descolonização), e só deixou de cooperar com o cinema local após a morte do Presidente Samra, em 1986. Entre parênteses: não acreditou na versão de acidente e Gabriel García Márquez, mais tarde, pôs uma pedra no assunto ao sentenciar: “Avião de Presidente não cai”.
Nos anos 80, aliás, RG iniciou relações de forte intimidade com García Márqez e realizou, no México, Erendira, baseado no livro do escritor colombiano, e interpretado por Irene Papas à frente de um elenco internacional, a que pertencia a então jovem atriz brasileira Cláudia Ohana, sua grande paixão e mãe da sua segunda filha. Em Cuba, por sua vez, relacionou-se com Fidel e sobretudo com Raul Castro.
Nos anos 90 residiu em Portugal com a sua companheira Leonor Arocha, artista cubana, e reaproximou-se da sua irmã e família, ex-retornados de Moçambique, que Ruy muito estimava…E a nossa proximidade aprofundou-se quando me encontrava em Lisboa, de férias. Mas a sua estada em Portugal não foi bem-sucedida, morou alguns anos em Algés, escrevia crónicas para O Estado de S. Paulo e achava “acanhado” o ambiente cinematográfico no país. Em 1999, a Cinemateca Portuguesa organizou uma retrospetiva completa da sua obra, exibindo, entre outros, Os fuzis, Ópera do Malandro, Kuarup (durante as filmagens deste último acolheu o pintor Júlio Pomar, que realizou uma série de quadros sobre os índios do Xingú). Realizou muitos outros filmes, como Estorvo, baseado no romance de Chico Buarque, e recentemente o extraordinário Quase Memória, baseado no livro de Carlos Heitor Cony e exibido em Lisboa no quadro de uma mostra do cinema brasileiro. A sua biografia narra alguns dos seus amores, desde Leila Diniz, com quem teve uma filha, Janaína, à portuguesa Paula Guedes, que se recusou a ir viver com ele para o Brasil…
Mas no documentário O homem que matou John Wayne é salientada a posição de RG de luta “contra a forma de colonização levada a cabo por Hollywood no cinema, ´não deixa passar` John Wayne ou tudo o que ele simboliza”. Então, no interior de um hotel na capital do cinema norte-americano, o cineasta português ao ver o ator Wayne desfere-lhe um potente murro no estômago que acaba por levá-lo à morte. Assim termina o documentário com Ruy Guerra a sorrir nas imediações da universidade do Rio de Janeiro de que é professor de cinema.
Ruy Guerra, o homem que matou John Wayne
no documentário O homem que matou John Wayne é salientada a posição de RG de luta “contra a forma de colonização levada a cabo por Hollywood no cinema, ´não deixa passar` John Wayne ou tudo o que ele simboliza
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