Já lá vão quase 15 anos. Foi por alturas da estreia de Palavra e Utopia que Manoel de Oliveira acedeu a dar-me uma entrevista sobre o filme (entretanto, publicada na Visão), a qual acabaria por se transformar numa conversa bem mais ampla sobre o cinema, a arte e a vida. O assunto prestava-se porque Palavra e Utopia – filme, recorda-se, sobre a vida e obra do Padre António Vieira – é um dos grandes filmes propriamente “testamentários” da obra de Oliveira, nesse registo acompanhando outros, como Acto da Primavera, Non ou a Vã Glória de Mandar, Porto da Minha Infância, O Quinto Império. Eu próprio havia já sustentado sobre o filme que me parecia que a sua verdadeira “imaginação” tinha menos que ver com a biografia de Vieira do que com o particularíssimo diálogo que a sua vida e obra estabeleciam com a própria vida e obra de Manoel de Oliveira. E que bem no centro desse diálogo – que vamos seguindo à medida que o filme o vai, também, “processando” – estaria, então, a questão do “ethos” português e os valores de intransigência formal e espiritual que, ao menos nos seus melhores momentos, lhe estão associados.
A conversa giraria muito à volta deste tema e também da criteriosíssima escolha que Oliveira sempre fez de todos e de cada um dos elementos dos seus filmes: não apenas dos planos e da composição, mas, na realidade, de tudo o resto, da música aos cenários, do guarda-roupa aos atores, das histórias aos protagonistas, compondo, assim, ao longo do tempo e de muitas dezenas de filmes, uma rede perfeita de cumplicidades exclusivas, onde António Vieira se alinha com Jesus Cristo, D. Sebastião com Cristóvão Colombo, Agustina Bessa-Luís com José Régio, Claudel ou Camilo Castelo Branco, Luís Miguel Cintra com Ricardo Trepa ou John Malkovich, Catherine Deneuve com Chiara Mastroianni, Irene Pappas ou Leonor Silveira. Uma cosmologia à qual se vêm juntar os mitos, as ideias e os valores para dar forma e substância – aos nossos olhos e na nossa memória – a uma verdadeira cosmogonia, isto é, a uma explicação global do mundo e do universo. Com as suas dimensões histórica e documental, claro – ou não estivéssemos a falar de cinema -, mas também mítica, ética e poética.
Sim, é certo – e quase não vale a pena repeti-lo -, que dessa cosmogonia Oliveira é tributário do seu lugar português e das idiossincráticas “inclinações” que ele permite. Ao mesmo nível de Camões, Vieira ou Pessoa. Tão grande como eles. Mas a condição portuguesa de Oliveira nem faz dele menos um cineasta universal, nem, sendo um cineasta, um artista menor que qualquer outro. É que, apesar de cineasta e português (o que poderia ser um mal hipoteticamente somado a outro), Oliveira soube logo descortinar, com extrema lucidez e juventude, como a experiência da arte servia de mediadora “laica” e, porventura, profana, entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses. Daí ter eu escrito – ainda há mais tempo, e desta vez a propósito de Acto da Primavera – que o cinema foi para Oliveira – como a pintura, a arquitetura e a escultura o foram, por exemplo, para Miguel Ângelo – um meio de interpelação do divino e, até, uma forma de estabelecimento direto de um diálogo com Deus. Neste mundo tão viciado em consumos diretos e indiretos e mergulhado em tão profundas misérias, este parece-me ser um ponto decisivo para entender o alcance e posição da obra de Oliveira, ao colocar Deus como seu primeiro e privilegiado espectador, isto é, como Aquele para quem se filma (ele próprio, aliás, o diria, numa entrevista a Jacques Parsi, ao afirmar o “sono de Deus” como validação última da vigília do cinema).
Ignoro, como todos nós, mortais, em que condições esse diálogo hoje prossegue, já para além da dimensão terrena e humana de que o espírito de Manoel de Oliveira se libertou.
Espero que no lugar onde ele hoje esteja exista um panteão de artistas, enquanto por cá saibamos tratar convenientemente da grandeza da sua obra. É uma tremenda responsabilidade, que implica um plano, uma estratégia, um sentimento e muita dignidade. Manoel de Oliveira deixou de filmar, sim, mas não é por isso que o seu cinema deixou de existir, muito pelo contrário. Aí o temos no meio de nós, puro testemunho da grandeza da arte e realização da sua intemporal utopia. Que nos torna um pouco mais imortais.