O filme irritou Vladimir Puttin, mas não o suficiente para impedir que fosse indicado pela Rússia como pré-nomeado ao Oscar de melhor filme de língua estrangeira. Na espuma da polémica, em torno de Leviatã, de Andrey Zvyagintsev, encontra-se uma película notável, com uma fotografia de postal ilustrado, que faz um retrato de uma Rússia profunda tomada pela corrupção e por uma máfia de oligarcas. Um mostrengo que devasta quem lhe aparece no caminho. E não há São Jorge que lhes valha, até porque, desta vez, a Igreja (Ortodoxa) está do lado dos maus.
Comecemos pela polémica. Quando, em 1994, Nikita Mikhalkov, realizou O Sol Enganador tornou-se um ícone do cinema russo pós-soviético. Não porque o seu filme se aproximasse dos grandes génios do cinema russo, mas porque soube espelhar a grande desilusão com o ‘comunismo’. O que talvez ainda não se suspeitasse é que Nikita Mikhalkov se tornasse o realizador do regime pós-soviético, homem de confiança de Vladimir Puttin à frente das artes cinematográficas. Foi Mikhailov que evitou que Elena (2011), notabilíssimo filme de Zvyagintsev, fosse pré-nomeado para os Oscars, apesar de ter sido o mais premiado e aclamado filme russo daquele ano. Esperava-se que este Leviatã, que faz uma denúncia mais clara à podridão da Rússia, seguisse caminho semelhante, apesar de ter ganho a Palma de Ouro em Cannes. Mas a opção foi deixá-lo ir. O filme estreou-se na Rússia, foi nomeado pela Academia americana (perdeu para Ida, do polaco Pawe? Pawlikowski) e Puttin até conseguiu dar a ideia de que há liberdade de expressão na Rússia.
Claro que o filme passa a ideia oposta. De que a Rússia profunda é pior do que o velho Oeste, pois nem a lei da bala funciona. De forma hábil e profunda, Zvyagintsev expõe as subtilezas promíscuas de um regime dominado pela alta corrupção, que serve estratégias de poder, alicerçando-se numa rede de aço, que passa por todos os poderes e tem como uma das armas mais eficazes a burocracia. É essa burocracia elevada a um absurdo kafkiano que faz com que o estado de Direito funcione apenas na teoria. Há um simulacro de democracia, com trâmites mafiosos. Uma inércia legal (a lei só é célere e eficaz para o lado do poder) que faz com que as personagens no seu dinamismo lutador caiam num emaranhado de nós e laços de que é impossível sair (embora possam ter essa ilusão).
Tudo isto se alia ainda à Igreja Ortodoxa, fechando assim o círculo do poder (os media são deixados de fora). E é em jeito de homenagem que, discretamente, as Pussy Riot surgem em plano de fundo numa televisão que ninguém está a ver.
Zvyagintsev tem a sobriedade de cruzar tudo isto com uma história pessoal, protagonizada por personagens fortes, bem desenhadas, de densa humanidade (como já acontecia em Elena), mas que circulam à beira de um abismo. É um filme fortemente humano e comprometedor. Mas mesmo nessas personagens há uma tensão permanente. Vai desde a pequena corrupção da polícia, encarada com normalidade, à violência de Roman, imitando o estilo do pai, passando pela tensão sexual entre Lilya e Dmitryi, prenúncio da tragédia.
Com excelentes atores, tendo Elena Lyadova em destaque, no papel de Lilya, Leviatã denuncia um país doente, com vícios entranhados, desde o passado soviético. Por irónico que possa parecer, Leviatã poderia até ter um papel semelhante ao que Sol Enganador teve nos anos 90, embora tenha um desfecho bastante mais pessimista. Faz a denúncia e fecha-nos num círculo, sem nos dar qualquer saída.