Emir Baigazin é uma espécie de Carlos Lopes do cinema cazaquistanês. Lições de Harmonia foi o primeiro filme do Cazaquistão a ser selecionado para a competição oficial de um grande festival, no caso o do Berlim. Fruto essencialmente do talento do realizador, mas também de uma politica de investimento do país no sentido de criar uma indústria cinematográfica, com espaço para filmes de vários tipos de registo, sendo que a maioria deverá ser falada em cazaque (a língua original da região, mas menos falada do que o russo). Contudo, Baigazin, sem freio, contornou possíveis intromissões do sistema e realizou um filme politicamente incorreto que provocou algum incómodo interno. No último Eurásia, o maior festival de cinema da Ásia Central, o filme esteve anunciado para abertura, mas acabou por não passar por motivos mal explicados. O Cazaquistão é aquilo que eufemisticamente se costuma chamar de democracia mal consolidada e, apesar de não ser um filme-denúncia, Lições de Harmonia expõe algumas fragilidades do regime.Sempre com uma sensibilidade cinematográfica apurada, de enquadramento perfeccionista, movimentos de câmara e montagem contidos, o filme é, em termos estéticos, ele próprio uma lição de harmonia. Até determinado ponto é um Elefante (Gus Van Sant, 2003) do Cazaquistão. Não há explicitamente a dimensão de uma Columbine, mas há um massacre psicológico, geracional, com sequelas para a vida. O bullying mais extremo, que se torna mais claustrofóbico, por ser aceite socialmente. Mal comparado, semelhante ao que se passa em Portugal com a generalização e aceitação da praxe universitária violenta, só que aqui atinge um estrato etário inferiore entra nos domínios do banditismo e da extorsão. Um elefante que tudo esmaga.A escola não é um lugar seguro. Nunca foi. Mas no Cazaquistão profundo essa insegurança atinge proporções amargas inimagináveis. Desde a mais tenra idade, impõe-se uma rede mafiosa de extorsão. É uma escola da vida, de criminosos, que preparam os outros para um futuro dominado por agiotismo, máfia e corrupção.Baigazin desenha um mundo de crianças. Os poucos adultos que aparecem são indiferentes ou impotentes perante o mundo de violência em que os filhos ou alunos crescem.A violência da primeira parte não terá incomodado mais o regime cazaquistanês do que a denúncia da segunda. É que, enquanto na primeira parte, assistimos a uma violência social, na segunda deparamo-nos com a violência de Estado, de uma polícia com métodos medievais, que usa a tortura como modelo de investigação para provar as suas teses. O que na primeira parte é premonição, na segunda é delírio. Na primeira há uma construção meticulosa, através dos mistérios das personagens, sobretudo de Aslan, que é hábil na construção do seu mundo à parte, cheio de elementos que revelam tensão, e que vão crescendo até a um ponto de saturação. Vão desde as experiências elétricas à relação com os insetos. Tudo conflui e ganha lógica no clímax. Mas também na fase delirante do segundo. Em que se ganha espaço para o domínio fantasioso. Lições de Harmonia é uma obra grande do novo cinema asiático, mas também um ato de coragem em nome da liberdade de expressão.Em complemento, a sessão inicia-se com a corta-metragem documental Primária, de Hugo Pedro, que venceu a última edição do Lisbon & Estoril Film Festival.
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