A História do Livro dá-nos exemplos de como alguns livros parecem insistir em manter-se num lugar ao sol, fugindo a um destino de morte e esquecimento. Tal é o caso do Ms II – 1519, a cópia manuscrita da Comedia Aulegrafia de Jorge Ferreira de Vasconcelos, atribuída a Dom António de Noronha, procedente da Biblioteca de Don Diego Sarmiento de Acuña, Conde de Gondomar, (1567-1626) que se pode consultar na Real Biblioteca de Palácio, em Madrid.
O 1º Conde de Gondomar, era grande amante de livros e, se “um homem pode ser julgado pela sua biblioteca”, como preconizava Cervantes, Dom Diego terá certamente um julgamento de eleição, pois bem avultado foi o número que reuniu, os quais, segundo um inventário de 1623, somavam mais de 6.500 volumes.
Nascido em Astorga a 1 de Novembro de 1567, teve uma vida de intensa deambulação. Em “Junho de 1583 desembarcou na ria de Vigo, de regresso de Lisboa”, altura em que Lope de Vega passou também pelo então “Cais do mundo” a caminho dos Açores, a mesma Lisboa em que Jorge Ferreira de Vasconcelos desempenhava o cargo de tesoureiro do Armazém da Guiné e Índia (entre 4 de Outubro de 1580 até [31] de Dezembro de 1583), agora ao serviço de Filipe I.
Em 1596 o Conde de Gondomar é nomeado corregedor de Toro. O Conde de Salinas felicita-o por essa nomeação. Salinas, o futuro presidente do Conselho de Portugal a partir de 1617, é a mesma pessoa (curiosa coincidência) a quem Dom António de Noronha dedicará a Aulegrafia do seu sogro, editada em 1619.
Em 1601, o futuro conde de Gondomar instala-se na Casa del Sol em Valladolid e, em 1605, solicita um posto na Junta de Portugal, que não vem a obter. Foi um homem viajado, um erudito, um mecenas e um bibliófilo. O seu grande amor pelos livros é bem conhecido, sobretudo pelos proibidos. Este amor interdito não o impedirá de pedir licença para os ler, mas os piedosos padres e até a sua própria esposa, para quem os ditos papéis e livros “fuera mejor que estubieran quemados”, não estão pelos ajustes. O Conde, numa desesperada e insistente epístola, queixa-se do próprio Papa, pois também este lhe nega o acesso aos seus tão amados livros proibidos.
Na sua biblioteca encontra-se um número impressionante de títulos portugueses bem escolhidos. No item “Comedias” lá se encontram: A Comedia de Ulysipo de 1618, e Comedia eufrosina de 1566 e se juntarmos a este lote a cópia manuscrita da Aulegrafia, a trilogia fica completa, podendo assim dizer-se que as obras de Ferreira de Vasconcelos tiveram recepção afortunada em Espanha na Casa del Sol, em cuja fachada se vê, esculpidos em pedra, um Sol e uma Ave Fénix.
Sabe-se que a Casa del Sol era frequentada pelo português Tomé Pinheiro da Veiga, autor da Fastigimia publicada em 1605, ainda hoje uma obra que apresenta a cidade de Valladolid ao visitante, na qual aparecem ecos da Eufrosina, então proibida em território nacional. Francisco de Quevedo consultou esta biblioteca e haveria de escrever o prólogo à edição da tradução castelhana da Comedia Eufrosina, em 1631. Lope de Vega, foi também visitante assíduo das obras de Vasconcelos e “sus más glorioso admirador”, segundo o lusitanista Eugenio Asensio.
E o que tem tudo isto a ver com o manuscrito da Aulegrafia? Tem tudo, porque as relações complexas de clientela política em tempo de monarquia dual e a conjuntura cultural específica que favorecia uma circulação e recepção de obras em rede, permitem colocar a hipótese tentadora que a transmissão desta cópia manuscrita, passasse por uma oferta de Noronha (genro de Vasconcelos e editor) a Salinas, então representante de Filipe II em Portugal, dado que lhe dedica a impressão seiscentista da comédia, o qual, por sua vez, a poderia ter oferecido a Gondomar, uma vez que eram amigos, e que este último era um incorrigível bibliófilo.
É curioso verificarmos que Noronha edita dentro de portas uma versão expurgada da obra mas, fora do país, vamos encontrar uma versão não emendada, que permite confirmar uma vez mais, a censura que se abateu sobre a obra de Vasconcelos, cujo juízo claro mostra uma liberdade de pensamento e uma crítica mordaz sobre muitas matérias que não será consentida, mais tarde, pela Contra-reforma e que foram obviamente responsáveis pela caça aos seus livros
O último a rir é o que ri melhor. Tras a nevoa vem o sol, tras um tempo vem outro tempo. Quando em 2010, apresentámos uma leitura encenada no Teatro Nacional em Lisboa, o público, sem o saber, ouviu e viu desta segunda vez, a versão renascida da Comedia Aulegrafia de Jorge Ferreira de Vasconcelos, cuja cópia manuscrita foi zelosamente preservada na Casa del Sol.
Silvina Pereira