Associado ao Festival de BD de Treviso, e preparado para o mercado italiano, Quadradinhos: Sguardi sul fumetto portoghese é um misto de apresentação histórica (algo enviesada) da BD portuguesa e histórias de autores com diferentes graus de representatividade. O número 20 de S!: Baltic Comics Magazine, editado em inglês na Letónia, também inclui trabalhos de uma grande variedade de autores nacionais, tendo como mote (pouco assumido) “O Livro do Desassossego”. Ambos são marcados pela (co)organização de Marcos Farrajota/Chili Com Carne, defendem sobretudo o valor de autores individuais que experimentam com a linguagem (assinando em simultâneo desenho e argumento), e contaram com apoio institucional (Instituto do Desporto e Juventude e Direção Geral do Livro e das Bibliotecas). São, portanto, também iniciativas públicas. Já a muito acessível edição em inglês de Crumbs reflete o trabalho de Mário Freitas/Kingpin Books no sentido de servir como uma espécie de portfólio de apresentação para autores nacionais, seguindo a filosofia de colaboração potenciadora entre argumentistas e desenhadores. E o cânone (privado) de rentabilizar investimentos para diferentes mercados. É crucial sublinhar que há, em qualquer dos casos, uma defesa intransigente da qualidade; mas interpretações distintas daquilo que isso significa. E que têm, por sua vez, implicações. Nada de errado nisso, a não ser fingir não o perceber.
Como sempre neste tipo de trabalhos há o extraordinário mérito em os organizar e muita qualidade individual, embora a heterogeneidade seja grande, sobretudo porque a pequena dimensão das histórias (e dos formatos, em S! e Crumbs) tende a limitar o desenvolvimento de ideias ou a apreciação plena do talento envolvido.
Mais “institucional”, Quadradinhos mistura autores consagrados (alguns com menor atividade recente) e novos valores, com destaque para Nuno Saraiva, João Fazenda, Filipe Abranches, Pedro Burgos, Joana Afonso, Miguel Rocha, José Smith Vargas. S! inclui mais contribuições de carácter experimental, como as de Cátia Serrão, Tiago Manuel, Paulo Monteiro, Daniel Lopes, e outra vez Fazenda, Burgos e Abranches. Em Crumbs vale a pena realçar André Caetano, Osvaldo Medina, Nuno Duarte, Ricardo Venâncio, Bernardo Majer, Pedro Serpa, e outra vez Afonso. Que autor faz o pleno nos três livros? Apenas um, e muito justamente. Francisco Sousa Lobo consegue de facto percorrer um território forte, chamativo para diferentes públicos, sem perder individualidade (outras possibilidades seriam Monteiro, Fazenda ou Afonso). O contraste com muitos autores que estão a tentar mostrar-se em busca de outras oportunidades, tentando fazer “de mais” em pouco espaço, é claro.
Importantes para a história recente da BD portuguesa estes três livros são exemplos de como chegar aos outros pode não ser linear, e necessitar de mecanismos estruturados. O coletivo pode também ter vantagens.
Crumbs. Kingpin Books. 160 pp., 10 Euros.
S!: Baltic Comics Magazine 20. Biedriba Grafiskie stãsti, Letónia. 164 pp., 14 Euros.
Quadradinhos: Sguardi sul fumetto portoghese. Mimisol Edizione/Chili Com Carne. 88 pp., 15 Euros.
PS- Um exemplo da dicotomia na BD portuguesa referida no texto acima (interessante ou caricato, consoante a visão) esteve patente na abertura da mais recente edição do Festival de BD de Beja. Isto porque se trata de um festival pequeno e, pelo menos na abertura, frequentado, quase em exclusivo, por membros do “mundo da BD” facilmente identificáveis.
O que se viu foi, em resumo, isto: na Bedeteca onde decorria a apresentação de novos livros de BD um “clã” estava dentro da sala a assistir à dita apresentação de uma obra que se enquadrava no “seu” modo de ver a BD. Por seu turno um outro “clã” aguardava pacientemente à porta ou no exterior para a apresentação de um “seu” livro”, que se seguiria. No intervalo saiam uns, entravam os outros. Contavam-se pelos dedos das mãos pessoas aparentemente interessadas em mais do que um tipo de BD (ou, algo cinicamente, refugiando-se no ar condicionado?) sendo que simbolicamente é preciso referir a mais óbvia de todas: Geraldes Lino. Esses eram os que ficavam de umas apresentações para as outras, não “rodando”. Se não tivesse visto não acreditaria, mas a verdade é que, ao contrário da Amadora onde ainda se vai encontrando algum “público anónimo”, em Beja o público naquela altura parecia resumir-se a autores/editores/divulgadores (e seus familiares), pouco mais.
Notem que não acho que o fizessem ostensivamente, ou por mal. Tomei-o como um mero sintoma que se enquadra no espírito deste texto, e que reflete algo de um mundo tão interessante quanto diminuto. À imagem dos movimentos alternativos na política portuguesa, o que divide parece ser (algo estranhamente) mais do que o que une, e uma aglomeração de duas pessoas já é um Movimento (na verdade basta uma). Em Beja fiquei com a certeza que a BD portuguesa tem uma dimensão e qualidade assinaláveis. E uma relevância nacional ao nível de um campeonato de distritais.