É claro que a distinção não é dicotómica, nada impede uma obra com características mais pessoais de ter sucesso económico, como nada impede uma obra feita com propósitos comerciais de ser digna de registo. E obras medíocres, más e irrelevantes há-as de todos os tipos.
Neste caso a discussão cruzou diferentes intervenientes de modo não-simultâneo, do cinema à BD. O realizador David Rebordão abordou a sua experiência de anos para fazer (e exibir em circuito comercial) RPG-Real Playing Game (com Tino Navarro). Tratando-se de um filme competente e interessante que, sobretudo, faz das suas fraquezas forças (como a escolha do cenário em ruínas), a questão é se vale a pena produzir em Portugal algo cujo retorno não é garantido, e que, noutros quadrantes, seria um projeto de intensidade média-baixa de rápida execução, clássico em termos do universo em que se move, globalizante e transnacional (portanto anónimo desse ponto de vista). No fundo, até que ponto não estaremos, do lado do Comércio, cinematograficamente reduzidos a 7 Pecados Rurais (que rapidamente ultrapassou RPG em termos de número de espectadores).
A série de BD Dog Mendonça e Pizzaboy, escrita por Filipe Melo e com arte de Juan Cavia e Santiago Villa, de que saiu recentemente Requiem, o terceiro e último volume (Tinta da China), tem pontos de contacto com esta discussão. Isto porquanto se trata de uma obra despretensiosa muito bem feita, que atinge os objetivos a que se propôs em termos de entretenimento (pensado) com qualidade, utilizando um registo de fantástico-FC, e mesclando tragédia, ação e humor negro. No entanto, afasta-se de RPG em dois pontos cruciais. Apesar do quadro referencial reconhecível, que lembra Dylan Dog ou Hellboy, há elementos portugueses que lhe dão uma identidade local única no meio do global. Por outro lado, foi um sucesso monumental sem precedentes em Portugal, com internacionalização na americana Dark Horse Comics, um feito notável, que terá aberto outras portas.
Mas a BD não é cinema, e é preciso considerar as dimensões reais desse sucesso. Fez dos autores milionários? Não parece. E, ao utilizar inúmeras ideias e situações que pareciam destinadas a mais do que uma história, Requiem tem características de finalidade autorreflexiva, onde é claro o cansaço das personagens (refletindo o dos autores?).
Neste contexto a internacionalização parece pois um caminho óbvio, para a Arte como para o Comércio, presumindo que ambos não devem, pelo menos, dar prejuízo… O que é curioso é que sejam pequenas editoras (como a Mmmnnnrrrg/Chili Com Carne, ou Manuel Caldas) a perceber isso, promovendo edições multilingues. Interessante também é repetir que, a propósito de Merci, Patron o editor francófono de Rui Lacas comentou que procura em autores estrangeiros universos criativos únicos; se é para fazerem o que os outros fazem mais vale trabalhar desde logo nesses mercados, de acordo com as suas regras. Como de resto têm feito, com sucesso, muitos portugueses. No cinema, algo de semelhante pode explicar o estatuto de Manoel de Oliveira, pense-se o que se pensar da sua obra.
Mas ao mostrar simultaneamente que o improvável era possível, e que o possível tem limites, As aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy foi, pela obra em si e por aquilo que representou, um marco surpreendente na BD portuguesa. Um cometa que se espera possa voltar passar de outras maneiras, noutras encarnações, noutras linguagens. No mundo da restauração é sempre importante haver excelente pizza.
As aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy III: Requiem. Argumento de Filipe Melo, desenhos de Juan Cavia, cores de Santiago Villa. Tinta da China, 130 pp., 17 Euros.