Também por isso se saúda a aposta da Polvo em “Morro da favela” de André Diniz, uma obra baseada na vida do fotógrafo Maurício Hora. Logo à partida é útil referenciar o óbvio: embora mais condensado do ponto de vista temático e temporal é impossível ler este livro sem pensar no duplamente extraordinário “Cidade de Deus”, o romance autobiográfico de Paulo Lins (1997) adaptado ao cinema em 2002 (direção de Fernando Meirelles e Kátia Lund). Mas, se esse pode ser um pretexto inicial para abordar “Morro da favela”, a premiada HQ (História em quadrinhos) de André Diniz vale por si própria. À semelhança de “Cidade de Deus” esta é uma história de pobreza, violência, solidariedade, medo e redenção . E narrada por um futuro fotógrafo, desta feita na favela Morro da Providência, no Rio de Janeiro. Mas tem uma perspectiva muito mais pessoal, dada pelo olhar-memória (e mais tarde, pela câmara) de Maurício Hora.
Claro que em “Morro da favela” há traficantes e “bicheiros” (Seu Luisinho, o pai de Hora, desde logo), que hesitam entre uma vida honesta e o crime (e, nesse caso, entre ser criminoso com ou sem consciência social). Claro que há raides policiais e violência, toda ela injusta. Claro que há uma vida comunitária intensa. Claro que há sonhos de ir mais longe. O que não existe é uma análise histórico-económico-sociológica muito profunda de como e porquê. As personagens de “Morro da favela” sabem bem aonde moram, mas valem por si mesmas; se representam alguma coisa fazem-no, não por causa da sua vida diária, mas para além dela. E fazem-no sobretudo na cabeça de cada leitor, de acordo com as suas espectativas. Apostar cirurgicamente em algumas figuras e aspetos menos focados (a violência doméstica, por exemplo) foi uma boa escolha de André Diniz, com o inevitável reverso da medalha de nem todos os intervenientes disporem do mesmo tempo para crescerem enquanto personagens, e por isso algumas motivações pessoais de “Morro da favela” se perdem um pouco no retrato coletivo.
Também é possível que esse fosse o objetivo último, potenciado por uma aposta gráfica de risco, com o mesma capacidade de prender e distrair. Num mundo que não parece linear André Diniz escolhe um registo a preto e branco de contrastes absolutos, utilizando um desenho geométrico que lembra sombras chinesas. A questão é que, se a opção cria um ambiente único, teatral e quase hipnótico, o custo é uma individualização nem sempre conseguida de personagens. Há figuras que por vezes se perdem, no desenho como na favela. Indiretamente assinalando o seu poder enquanto organismo urbano complexo e autónomo, passível de ser classificado de muitas maneiras, desde um pretexto a um modo de vida. São de facto muitas as coisas que a HQ “Morro da favela” trás para a discussão, de uma forma muito eficaz. É o que se pede de um livro.
Morro da favela. Argumento e desenhos de André Diniz. Polvo, 150 pp., 16,85 Euros.