Claro que, não podendo editar obras como Alix ou Blake & Mortimer (ou mesmo Michel Vailant) as apostas da NetCom2 passaram por séries menos conhecidas, mas de vertente clássica linear (não as reapropriações subvertidas de Floch ou Daniel Torres, por exemplo), como A última profecia de Gilles Chaillet (Glénat), ou As Investigações de Margot de Olivier Marin, Emilio van der Zuiden e Metapat (Paquet). Disse na altura que o sucesso do projeto deverá depender da disponibilidade de um público que cresceu com este tipo de histórias, e é difícil de prever, para mais com uma distribuição menos visível. Uma coisa é certa: nenhum leitor (ou crítico) poderá dizer que ficou surpreendido com as escolhas editoriais, ou com o tipo de histórias. A filosofia é clara desde início, não procura agradar a todos os leitores, nem enganar quem quer que seja. É um princípio que se louva. E, já agora, as edições têm bastante qualidade, e os livros são interessantes, merecendo mais do que ser classificados como meras “séries B” em relação àquilo que teriam sido as eventuais primeiras escolhas da editora, estivessem os direitos disponíveis.
Na verdade, qualquer uma das apostas vale mais a pena do que O Juramento dos Cinco Lords a mais recente aventura das personagens Blake & Mortimer, criadas por Edgar Pierre Jacobs, e “continuadas” neste volume por Yves Sente e André Juillard (ASA). Já referi várias vezes achar que este tipo de exercício necrófilo e preguiçoso menoriza a obra de Jacobs, e a banda desenhada como um todo, porquanto não faz sentido pensar em algo parecido em nenhuma outra forma de Arte, senão como oportunismo saloio. Não me vou repetir.
No entanto, e abstraindo a identidade dos protagonistas, é justo dizer que O Juramento dos Cinco Lords é uma criação competente, que sem dúvida interessa aos leitores-alvo da NetCom2. Perde um pouco quando se afasta da matriz de Jacobs, complicando e tentado introduzir o elemento histórico “real” relacionado com Lawrence da Arábia. Neste tipo de situação a referência tem de funcionar com naturalidade, e aqui o argumento perde demasiado tempo a contextualizar (mal) a história nalguns pontos, tempo que depois lhe falta para trabalhar uma história de vingança, cujo “twist” parece tirado de uma má imitação de Agatha Christie.
Mas voltemos ao trabalho da NetCom2.
Alguns potenciais leitores poderão encarar a série de Gilles Chaillet A última profecia (no original das edições Glénat) como uma espécie de alternativa a Alix de Jacques Martin (ASA), não só pelo estilo de desenho, como por se passar nos tempos do Império Romano. No entanto isso não é, nem justo, nem correto, a não ser em termos de representação arquitectónica.
De facto a série passa-se em Roma, mas a Roma de Alix representa os inícios áureos do Império, aqui temos a sua fase final, com a capital em Constantinopla, o oficializar da religião católica como crença do regime, e a ameaça de desintegração. Ou seja, há desde logo um contexto muito mais fluido e dramático do que aquele que marca a série emblemática de Jacques Martin. O protagonista Flaviano apresenta-se, neste primeiro de cinco volumes, como um resistente que luta pela Antiga Roma (a de Alix), e pelos seus deuses politeístas, contra a repressão dos (antes reprimidos) seguidores do Papa. É um ponto de partida interessante, e apesar de ter de apresentar demasiadas personagens e situações (até por esta ser um época menos abordada), Chaillet consegue transmitir a complexidade das relações em causa (políticas, sociais, religiosas), e o início da história serve sobretudo para definir o contexto, de momento marcado por conspirações obscuras em torno das mudanças no Império. Há um lado negro e violento em A última profecia, que a este nível se posiciona a meio caminho entre o mais asséptico-sublimado Martin, e o mais concupiscente-direto Jean Dufaux (na excelente série Murena, também da ASA). Por outro lado Gilles Chaillet introduz uma dimensão totalmente distinta, na forma de elementos fantásticos, inspirados na mitologia clássica. Vamos ver aonde esta mistura nos leva, mas para já esta série é uma boa surpresa.
Como é, a um nível totalmente distinto, As Investigações de Margot (publicada em francês pela Paquet). Criada por Olivier Marin o desenho é aqui mais redondo e caricatural, as cores menos ameaçadoras, o tom mais humorístico, o argumento menos sério. Por estranho que isso pareça quase se pode dizer que os argumentos são detalhes, funcionando como pretextos para apresentar os verdadeiros interesses do antigo aluno de Bob de Groot. E os principais interesses de Olivier Marin são automóveis “vintage” e a estética “pin-up”, embora os dossiês no final de cada livro apenas tratem do primeiro… A protagonista da série parece ter saído de uma revista de “glamour” pré-Playboy e trabalha como jornalista numa revista dedicada ao mundo automóvel em 1959.
Se o primeiro volume foca a busca de um mítico Citröen de 1934, o segundo passa-se num “rally” onde competem apenas mulheres. Ou seja, temos pretextos ideais para representar vários tipos de automóveis históricos, bem como mulheres em fatos justos (ou nas mais diversas poses estudadas, incluindo algum “bondage”). Em sua defesa o autor provavelmente diria que a sua protagonista Margot é uma mulher forte e independente, que marca a emancipação dos anos 1960. Não estaria errado, não fosse o simples facto de todas as personagens femininas parecerem ter saído do mesmo molde de formas generosas, apenas se distinguindo por pormenores como o cabelo. Estamos pois, a esse nível, em terrenos semelhantes aos pisados por Milo Manara ou Paolo Serpieri. Podem fazer-se várias leituras de As Investigações de Margot, a minha é que se trata de uma série humorística ligeira, benigna e bem feita, que cita as suas referências com carinho (há várias personagens de BD a fazerem aparições breves), e que tem uma clara empatia pela história automóvel, tratando os carros como personagens de pleno direito. Acho sobretudo curioso que seja uma série com caraterísticas juvenis a piscar abertamente os olhos aos pais dos seus supostos leitores-alvo.
Na verdade, e voltando ao primeiro ponto que fiz quando soube deste novo projeto editorial, não sei se os livros da NetCom2 poderão atrair novos leitores para a banda desenhada, mas estas séries interessam certamente a quem admira as mesmas obras que iluminaram os seus criadores. Sendo um deles não me considero defraudado, antes, e dentro daquilo que era expectável, agradavelmente surpreendido.
A última profecia 1: Viagem aos Infernos. Argumento e desenhos de Gilles Chaillet. NetCom2 editorial, 48 pp., 15 Euros.
As Investigações de Margot: O Mistério do Traction 22. Argumento de Olivier Marin, desenhos de Olivier Marin e Emilio van der Zuiden. NetCom2 editorial, 48 pp., 15 Euros.
As Investigações de Margot: As Deusas da estrada. Argumento de Olivier Marin e Metapat, desenhos de Olivier Marin e Emilio van der Zuiden. NetCom2 editorial, 48 pp., 15 Euros.