Uma das maiores virtudes do AmadoraBD é servir de pretexto para o lançamento de novos livros, com destaque para os autores portugueses; não faz sentido discutir nada se não houver massa crítica.
“A Ermida” de Rui Lacas (Polvo) é um pequeno livro evocativo ainda sob a égide dos 100 anos da Implantação da República, que se foca no espaço da Ermida de Nossa Senhora da Conceição em Belém (Lisboa) utilizando temas relevantes para o projecto local “Travessa da Ermida”. A história é simples e vale pelo talento do autor no jogo de sombras e na expressividade das personagens, dispensando o uso de grandes quantidades de texto. Mesmo num projeto menos ambicioso Rui Lacas mostra porque é um dos melhores e mais versáteis autores nacionais.
Ricardo Cabral é outro nome que tem atingido patamares de sucesso elevados (evidenciada pela escolha de um desenho seu para capa dos cadernos Moleskine), o que passa, em grande medida, por transcender o público habitual da banda desenhada. Utilizando de modo muito inteligente a mistura entre fotografia e desenho, Cabral evita a armadilha de artificialismo inerente à técnica, conseguindo transmitir uma notável emotividade. O seu mais recente trabalho “Pontas soltas” (ASA) prova o alcance do seu sucesso, já que, como o nome indica, reúne histórias curtas publicadas em vários locais e parece claro que a coletânea dificilmente existiria se o nome do autor não desse garantias. São, por um lado, trabalhos interessantes para se fazer uma genealogia do percurso e opções de Cabral; por outro estão, na maioria dos casos, distantes do poder evocativo global de “Israel Sketchbook”, e mesmo de “NewBorn”. Destaque para a exceção maior que é a bela história onírica sobre o ateliê Lisbon Studios.
Se a BD portuguesa tem tido desenhadores talentosos no campo do argumento há alguma orfandade, preenchida, por exemplo, por David Soares. Escritor estabelecido no panorama da literatura fantástica, Soares produz regularmente argumentos para BD, o mais recente “O pequeno deus cego“, desenhado por Pedro Serpa (Kingpin Books). Depois de “Mucha” (desenhos de Osvaldo Medina) o horror volta a manifestar-se, desta vez relatando o destino um estranho e martirizado jovem num Oriente apócrifo. Há uma fronteira (fina, mas clara) entre o hermetismo simbólico evocativo útil, e o hermetismo enquanto artifício, e, até por cruzar muitos temas, “O pequeno deus cego” não a negoceia sempre da melhor forma. Vale pelas estimuladoras pulsões e imagens fortes de Soares, que neste caso encontraram o ilustrador ideal no estreante Serpa. Paradoxalmente, porque o argumento é resolvido com um desenho claro e luminoso, e é a falta de sombras que sublinha a inquietação das palavras.
A terminar um livro que se saúda particularmente: a coletânea de trabalhos curtos “Há piores!” (Polvo). Com nome no universo dos fanzines (nomeadamente histórias protagonizadas pela banda BadSummerBoys), Geral e Derradé são dos bons cultores do humor na BD portuguesa, destacando-se aqui as “aventuras” do estudante universitário Bubas (o nome é o programa), a paródia ao detetive do oculto João Constantino e as histórias “autobiográficas”. Se trabalhassem no mercado francófono é muito provável que Geral e Derradé publicassem, por exemplo, na editora Bamboo, conhecida pela séries de “gags” humorísticos baseada em profissões ou comportamentos, com alguns volumes editados entre nós. Assim sendo, fazem pela vida. Mas têm toda a razão: há (muito) piores!
A Ermida. Argumento e desenhos de Rui Lacas. Polvo, 52 pp., 7,5 Euros.
Pontas soltas. Argumento e desenhos de Ricardo Cabral. ASA, 92 pp., 17,95 Euros.
O pequeno deus cego. Argumento de David Soares, desenhos de Pedro Serpa. Kingpin Books, 48 pp., 12 Euros.
Há piores! Argumento de Geral, desenhos de Derradé. Polvo, 68 pp., 7,5 Euros.