Desde logo porque após obras menos interessantes da fase final da vida de Hugo Pratt (sobretudo Mú), a ASA tem feito um excelente trabalho ao lançar novas edições das melhores aventuras, como as histórias curtas passadas na selva amazónica, nas ilhas do Caribe e trincheiras da Primeira Guerra Mundial que compõem Sob a bandeira dos piratas, Longínquas ilhas do vento e A lagoa dos mistérios. Algo que poderá, quer atrair novos leitores interessados na temática da aventura e da viagem (Stevenson, Conrad, London e Hemingway são algumas das referências), quer comprovar a antigos fãs que Corto Maltese resiste aos anos e à memória permissiva de primeiras leituras. Mais do que isso: revela-se a outros níveis.
Nestas histórias, publicadas em 1970-71 e passadas durante a Primeira Guerra Mundial, há apenas algumas que se podem considerar como de aventura “pura”, já que tratam de salteadores e tesouros escondidos (… E voltaremos a falar de cavalheiros da fortuna, Por culpa de uma gaivota, O anjo da janela do Oriente, Sob a bandeira do ouro). Mas mesmo nessas o fulcro é na verdade um tema comum em Pratt: a desconstrução de lendas e o dissolver de estereótipos. Apesar da natureza cavalheiresca do protagonista, em Corto Maltese o mito é sempre tratado com desconfiança, Corto é o único romântico (mas nunca ingénuo) de serviço. As restantes histórias são na verdade magníficas BDs de síntese pré-pós-colonialista (e merecem uma leitura mais detalhada a esse nível), com a particularidade de serem protagonizadas, não por políticos visionários e patriotas independentistas, mas por aventureiros, ladrões, agentes duplos e caçadores de tesouro, muitos deles mulheres (Morgana, Venexiana, Soledad, Esmeralda, Boca Dourada, Ambiguidade). Sem deixarem de ser histórias de aventuras. Cabeças de cogumelo e Fábulas e avós discutem a miscigenação e a incompreensão, em Uma águia na selva descartam-se antigas potenciais coloniais, Um negócio de “bananas” glosa o posicionamento face à nova potência emergente (os EUA), Vodu para o Senhor Presidente fala da necessidade em remover do poder “libertadores” convertidos em oligarcas. A capacidade de Pratt para criar (e descartar) personagens fortes, densas e credíveis em duas vinhetas, bem como a mescla de elementos (política, economia, antropologia, mistério, paixão, referências e citações), aliada a um desenho eficaz e nada rendilhado, tende por vezes a fazer esquecer a mestria gráfica. Patente, por exemplo, nas transições da magnífica história de perda e fuga A lagoa dos belos sonhos, no retrato de isolamento que inicia Por culpa de uma gaivota, ou no fantástico e simbólico início de Um negócio de “bananas”, no qual as armas de homens ocultos nas sombras parecem falar por eles.
Embora a ASA esteja a fazer um trabalho notável em termos de BD em francês as histórias (independentes, mas com ligações entre si) foram inicialmente recolhidas em Sous le signe du Capricorne e Corto, toujours un peu plus loin, e, seguindo a nova versão francesa a cores em quatro álbuns (de 2009-10), faltam as histórias iniciais (o álbum Suite Caribéene), o que é pena. Por outro lado, nunca se refere a ordem de leitura. E sem querer tirar mérito às introduções de Steiner e D’Anna, sente-se a oportunidade perdida de, jogando com múltiplas referências e influências da personagem entre nós, promover uma (utópica?) edição de facto nacional. Mas nada disto subverte a essência: as histórias estão lá e a arte de Pratt vive nelas, não se limita a nostalgicamente sobreviver. Em conjunto com As Etiópicas três livros essenciais para quem acha que conhece Corto Maltese sem o (re)ler.
Corto Maltese: Sob a bandeira dos piratas, Longínquas ilhas do vento e A lagoa dos mistérios. Argumento e desenhos de Hugo Pratt. ASA, 100 pp., 27,50 Euros cada.