Todos os volumes lidos confirmam o que tinha sido dito a propósito de A Sickness in the Family de Denise Mina (argumento) e Antonio Fuso (desenho). A Vertigo Crime é pensada à volta de bons argumentos, servidos por desenhos funcionais mas nada espetaculares, com capas evocativas num estilo totalmente distinto. Num certo sentido faz lembrar o Sandman de Neil Gaiman, antes de este se ter tornado um fenómeno e toda a gente o querer desenhar. No entanto, o estilo da coleção é claramente inspirado nos “pulps” norte-americanos, desde as capas de Lee Bermejo ao papel reciclado, passando pelo formato de bolso e pelo tom dos argumentos, onde predomina a narração auto-reflexiva dos protagonistas e uma sensação iminente de precipício e fado.
Claro que há uns livros mais formulaicos do que outros, e isso não é necessariamente mau. Mas é de fato o problema principal de Filthy Rich de Brain Azzarello (argumentista da excelente série 100 Bullets) e Victor Santos (desenho). A história junta o clássico Ingénuo à respetiva Mulher Fatal numa espiral de perdição em torno de Dinheiro e Poder tão bem construída quanto previsível. Por outro lado o contraste entre a representação quase inofensiva das personagens e as suas ações por parte do espanhol Santos é particularmente interessante, destacando-se ainda o uso de sombras (citando Frank Miller).
Escrito por Andersen Gabrych FogTown introduz dois conceitos adicionais à típica mistura referida acima. Por um lado a Redenção, por outro a Identificação do protagonista com aquilo que investiga. Neste caso a intriga gira em torno de crimes de natureza sexual, e, portanto, da sexualidade. Sendo o cenário San Francisco, o contexto e desfecho não são difíceis de adivinhar, se bem que, ao contrário do sempre cínico Azzarello, Gabrych não resiste a uma mensagem de esperança. O desenho de Brad Rader (mais conhecido como animador e “storyboarder”) assemelha-se ao de Howard Cruse, cujo autobiográfico Stuck Rubber Baby é uma referência na BD autobiográfica, tocando temas semelhantes aos de FogTown. Mas Rader é mais rígido, e não consegue transmitir bem a angústia íntima que o argumento pede.
Curiosamente, os livros mais interessantes da coleção parecem ter sido escritos por britânicos. Em The Bronx Kill o argumentista inglês Peter Milligan introduz ainda outro conceito: a Meta-Narrativa, uma vez que o crime em que o protagonista se envolve tem paralelismos com o romance que escreve “dentro” da BD. A história junta um policial novaiorquino arquetípico com uma memória de imigração e de intriga familiar onde se notam algumas afinidades com o argumento de Denise Mina, mas uma resolução mais canónica. Milligan está um patamar abaixo dos melhores argumentistas britânicos (Alan Moore, Grant Morrison, Garth Ennis, Warren Ellis) mas tem obras muito interessantes (Skin, Enigma), e o o conceito de narrativas cruzadas e do diluir da realidade dá uma dimensão adicional a The Bronx Kill. Também ajuda imenso que o desenho de James Romberger (bom uso de tramas e cinzas para criar textura) tenha muita qualidade e consiga transmitir a sensação de perda e dissociação que a história precisa.
Por último em Dark Entries Ian Rankin usa uma um “High Concept” (ou seja, uma ideia que se quer “diferente”, mas que se explica numa frase) para criar o melhor argumento dos quatro lidos. Rankin é um autor de policiais renomado (Inspector Rebus) e claramente a figura de destaque da coleção. Não é preciso saber nada do autor para o perceber: o seu nome é escrito em letras maiores nas caps e lombadas do que todos os outros, e o desenhador italiano Werther Dell’Edera é o único a não figurar na lombada (quem o manda ter um apelido tão comprido?…). Talvez por ser o único autor que não trabalha regularmente em BD Rankin escolheu para protagonista uma personagem de BD, o detetive do oculto John Constantine (protagonista da série Hellblazer). Criado por Alan Moore na série Swamp Thing, Constantine é um carismático detetive duro e cínico de gabardina com todos os típicos vícios e qualidades dos melhores (ou piores), que apenas tem a particularidade de investigar demónios, assombrações e infernos variados. Que podem não ser necessariamente o que parecem, já que a série teve um cunho muito político, nomeadamente crítico das políticas de Margaret Thatcher, por exemplo através do trabalho do excelente argumentista Jamie Delano (desenhos de John Ridgway). Em Dark Entries John Constantine terá de enfrentar um dos piores desafios da sua carreira: ser participante num “reality show” do tipo Big Brother, versão Inferno. Os paralelismos com a sociedade contemporânea são claros, como transparente é a mensagem. O que não impede que a história tenha densidade e resulte muito bem, destacando-se os retratos das personagens secundárias, que são individuais apesar de representarem “tipos” mais vastos. O desenho de Dell’Edera encaixa na coleção, ou seja, é funcional. Mas para representar demónios e destruição num ambiente fantástico não será o mais indicado, e testemunha (involuntariamente) a principal limitação da filosofia editorial por trás de Vertigo Crime a este nível.
Construída à volta de Sandman, a Vertigo surgiu como uma sub-editora da DC Comics para atrair leitores adultos e com propensão para o fantástico. Feita de policiais inteligentes e descendendo claramente de uma tentativa anterior da DC neste campo (o “imprint” Paradox Press), Vertigo Crime surpreende e tem potencial, embora a questão do desenho não seja bem resolvida nalguns casos, e possa afastar o leitor ocasional.
Uma coleção com espírito semelhante, mas completamente distinta em filosofia, é a francesa Rivages/Casterman/Noir. Na verdade, uma análise comparativa pode ser eloquente para compreender algumas das mais importantes diferenças entre BD norte-americana e BD franco-belga. Voltarei a este assunto.
Filthy Rich, por Brain Azzarello (argumento) e Victor Santos (desenho). Vertigo Crime, 2009 (15/20)
FogTown, por Andersen Gabrych (argumento) e Brad Rader (desenho). Vertigo Crime, 2010 (13/20)
The Bronx Kill, por Peter Milligan (argumento) e James Romberger (desenho). Vertigo Crime, 2009 (16/20)
Dark Entries, por Ian Rankin (argumento) e Werther Dell’Edera (desenho). Vertigo Crime, 2009 (16/20)
PS- Isto das notas não é linear, porque a combinação de texto e desenho em BD também não é… O desenho influenciou a nota de Filthy Rich (para cima), e de Dark Entries (para baixo). Nas outras duas obras o equilíbrio entre uma coisa e outra é quase total.