Falando com o editor suíço da Paquet foram muito evidentes os motivos que o levaram a apostar em Merci, Patron de Rui Lacas (Obrigada, Patrão em edição portuguesa posterior da ASA). Era uma história com um universo próprio e único (no caso um contexto rural português), que, ao contrário de outras obras que lhe chegavam às mãos, não emulava universos francófonos ou americanos. Uma perspectiva diferente, que não tenta ser o que não é, e se mantem fiel a si própria. Muito semelhante em tom ao anterior (e, em minha opinão, superior) A filha do Caranguejo, mas totalmente contrário do projecto seguinte de Lacas, Asteroid Fighters, que por essa ordem de ideias, deveria ter chocado o mesmo editor; embora seja apenas outra faceta do talento de um autor que não se deixa levar por aquilo que é “suposto” fazer.
Palpita-me que o mesmo editor diria algo de semelhante à sua apreciação de Merci, Patron em relação ao primeiro volume de Hereville (subintitulado How Mirka got her sword) de Barry Deutch. O universo aqui é o da ortodoxia judaica, uma existência familar numa pequena comunidade completemente afastada do mundo dos goy/goyim (não judaicos), e que com eles (pelo menos neste primeiro volume) não se intersecta. Desde logo há duas características interessantes no discurso de Deutch. Por um lado a exuberância positiva e juvenil das suas personagens e traço. Por outro o facto de a tensão narrativa ser interna, não se alimentando do conflito implícito nós-outros tão comum nas narrativas com o mesmo tipo de referências, seja nas obras de Riad Sattouf, seja (também com o judaismo em pano de fundo) nas de James Sturm. Hereville é uma história simples, de como uma protagonista voluntariosa se mete em trabalhos, e deles se liberta, mais forte do que antes. Um história que tanto é sobre maldições fantásticas e vencer um “troll” para lhe retirar uma espada mágica, como é sobre a descoberta de si mesma durante a adolescência, sobre um mundo (adulto) desconhecido, pais que protegem/castram, irmãos de colaboram/irritam, amigos e inimigos escolares. Seguindo as características da protagonista Mirka o traço é grosso e forte, com poucas dúvidas e sombreados, embora a planificação por vezes intrincada sugira complexidades futuras.
Claro que há misterios obscuros por revelar, e Deutch utiliza a obra também para fazer pedagogia quanto ao modo de vida, tradições e hábitos dos judeus ortodoxos. Mas fá-lo de um modo agradável, descomplexado. Alegre. E, acima de tudo, integrado na história.
Mais importante do que isso, esta pode ser uma excelente obra para fazer a ponte entre BD infantil (a única BD que é “natural” na cabeça de muita gente) e BD adulta (a que é mais interessante). A falta de livros (bons) que cumpram essa função (porquanto se presume que as crianças terão necessidade de outro tipo de leituras, enquanto os adultos que lêem BD não se interessarão) é um dos problemas mais sérios da banda desenhada contemporânea.
Hereville: How Mirka got her sword, por Barry Deutch, Amulet, 2010. (15/20)