O mais belo dragoeiro do mundo está no jardim da casa de Lourdes Castro e quando ela convida para uma visita pede que o vejamos primeiro. Não é possível conceber entrar em sua casa sem o assombro diante daquele ser. Os dragoeiros parecem muito perto de ser carne. São animais que se plantaram e demoram. Naquela encosta, levantados acima de outras casas e muito acima do vasto mar, catamos pedras e preparamos o coração. Encontrar Lourdes Castro é muito mais do que lidar com a memória do muito melhor da arte do século XX, é ficar perante a persistente candura, a alegria sincera de uma mulher cuja sapiência a levou à conquista mais preciosa: a amorosidade.
Busco algumas pessoas porque sucumbo ao deslumbre. Sou declaradamente apaixonado por gente e arte e jamais me demitirei do elogio aos que me inspiram e, em alguns casos, me orientam. Lourdes Castro, com seu mundo de sombras, insinuações de presença e ausência, múltiplos do corpo ou pluralidades que a indefinição permite, esteve no meu imaginário desde sempre, profundamente poética, elegante, inteligente, delicada. Ainda mais, cheia de livros. Uma maravilhosa artista dos livros, explorando a criação de uma outra biblioteca. De ver, de sentir lugares, de ser outro lugar a partir do papel. Outra escritora. Uma de narrar por sua linguagem própria, seus vocábulos gestuais, criados ou colhidos, retirados da leitura do corpo, dos corpos, da atenção ao que quase não é. Quase não está.
Claro que nas muitas vezes que estive na ilha da Madeira sonhei encontrá-la. Por pudor, não havia procurado. Temia ser impositivo, pretensioso, sem propósito, feio, redundante.
Em novembro, pela graça de ser convidado para a Feira do Livro do Funchal, à mão desse artista e agitador de afetos excecional que é o Rui Camacho, fui com dois amigos cumprimentar a Lourdes Castro. Tínhamos de ver o dragoeiro no jardim. Talvez até passear no jardim, assistir à sua luminosidade, à paisagem, como se põe ainda calmo, e como são suas pedras, o chão algo rosado. Depois, trocaríamos autógrafos e faríamos fotografias e diríamos como são fundamentais esses instantes em que nos encontramos com pessoas que amámos a vida inteira à distância.
Ela leu o título na capa do meu livro, a nova edição de a máquina de fazer espanhóis, divertiu-se e disse: deve ser fresco. Afagava um pouco o livro como se fosse um animal doméstico, uma companhia para ser estimada. Reparei nesse carinho, que era sobretudo um sinal de respeito, um sinal de alegria com a nossa visita, como se estivesse a agradecer-nos pela sua própria generosidade. Coisa que me fascina nos grandes mestres, a humildade que lhes sobra quando não têm nada a temer nem a dever. Estão genuínos e inteiros no resultado das suas vidas e das suas artes. Assim estava Lourdes Castro. Inteira.
Assinou-me um livro escrevendo: “Boa tarde, Walter Hugo Mãe”. Desenhou-me um beijo. O meu amigo Paulo levou-lhe uma anona enorme do quintal da sua mãe e ela tomou a anona fascinada. Que objeto perfeito é uma anona gigante da Madeira. Facetada como um diamante verde e baço, um diamante calmo, sem vaidade, apenas perfeição. E a Lourdes Castro levantou-a segura entre as duas mãos e mostrava-a igual a uma escultura nova para a casa. Era uma fortuna. Um fruto que era uma fortuna.
Trouxe uma pedra escolhida de entre as suas pedras. O jardim as faz. Mais do que arte, a pedra é a anona eterna, a natureza eterna, que não vai embora e, ainda que não diga, jamais esquece. É a anona perfeita que jamais esquece e onde jamais será possível a morte. O tempo não lhe passa.
A morte súbita de Lourdes Castro, ainda que numa idade tão bonita e vencedora, é uma tristeza profunda, um empobrecimento do mundo. Mas, mesmo assim, tenho a impressão de que apenas sorriu um pouco mais e se confundiu para sempre com a claridade. Acabou a sombra. Tudo nela, na verdade, era modo de claridade.